Viomundo, 24/02/2017
O golpe suscitou a criação de várias frentes de luta.
A primeira e mais óbvia é a luta pela restauração da democracia e do voto popular, a qual se expressa no combate contra o golpe continuado e o Estado de Exceção, que ameaça direitos civis e políticos e criminaliza estudantes, movimentos sociais e a oposição de um modo geral.
A segunda tange às lutas contra a desconstrução dos direitos sociais e o desmonte do Estado de Bem Estar inscrito na Constituição Cidadã de 1988.
Para complementar a emenda Constitucional nº 95, de 2016, que congelou os investimentos em saúde, educação, assistência social, ciência e tecnologia, etc. por 20 longos anos, crueldade inédita no mundo, agora socam goela abaixo do brasileiro a reforma da previdência, complementada pela reforma trabalhista.
Esta última, ao praticamente extinguir a proteção ao trabalhador assegurada pela CLT e permitir a jornada de trabalho de até 220 horas por mês, aumentará a precariedade laboral no Brasil e condenará boa parte da força de trabalho a uma espécie de subemprego legalizado.
Já a reforma da previdência, ao exigir quase meio século de contribuição para a aposentadoria integral e 25 anos para a aposentadoria mínima, tornará nosso sistema previdenciário o pior do mundo, com exigências situadas muito acima do que prevalece em países desenvolvidos, que têm população bem mais envelhecida que a nossa.
Subemprego em vida e aposentadoria na morte. Este será o destino dos trabalhadores do Brasil, especialmente dos menos qualificados.
A terceira frente de lutas, vinculada à segunda, diz respeito às lutas pelo crescimento econômico com distribuição de renda e combate à pobreza e pelo emprego e renda dos trabalhadores.
O modelo ultraneoliberal que o golpe intenta implantar consagraria um tipo de crescimento (se houver) excludente, com concentração de renda, aumento da pobreza relativa e absoluta e redução da participação dos salários no PIB.
No máximo, voltaríamos aos tempos da ditadura militar, quando boas taxas de crescimento foram acompanhadas pelo aumento estarrecedor da concentração de renda.
A previsão mais realista, porém, é que passemos a combinar taxas medíocres e voláteis de crescimento, com incremento avassalador da concentração dos rendimentos e aumento da pobreza.
Somente para este ano, o Banco Mundial projeta que até 3,6 milhões de brasileiros voltarão à pobreza, de onde tinham saído graças às políticas dos governos do PT.
Mas há também uma quarta frente de lutas. As lutas contra a erosão da soberania e o caráter antinacional do golpe. Com efeito, o golpe desencadeou uma série de ações medidas que colocam em xeque a soberania, o patrimônio e a economia nacionais.
A venda, a preços aviltados, das jazidas do pré-sal, sem a participação da Petrobras como operadora única, aliena nossa capacidade de investir nas gerações futuras, como era o intento dos governos do PT.
O fim da política de conteúdo nacional leva desespero e desemprego a vastos setores produtivos, especialmente à indústria naval. O impedimento do BNDES de emprestar cria grave entrave à retomada dos investimentos.
A ofensiva geral contra o crédito público e os bancos públicos coloca obstáculo praticamente intransponível à retomada do crescimento, pois a banca privada não vai soltar dinheiro numa situação de insegurança e recessão.
O desmonte da política externa “ativa e altiva”, particularmente do Mercosul, da Cooperação Sul-Sul e do BRICS, apequena o país e destrói um mercado externo importante para nossa indústria.
A retomada das negociações para o uso da Base de Alcântara pelo EUA, nos termos assimétricos propostos por aquele país, ameaça o projeto do veículo lançador de satélites e o programa espacial brasileiro.
A Lava Jato, por sua vez, destrói a construção civil pesada nacional, a exportação de obras brasileiras para o exterior e assesta golpe mortal contra o projeto do submarino nuclear e vários outros projetos estratégicos da defesa nacional.
Até mesmo o território, base do Estado-Nação, está em perigo. A anunciada medida provisória que permitirá a venda, em grande volume, de terras a estrangeiros para “atrair investimentos” suscita dúvidas sobre o domínio que o país poderá preservar sobre vários recursos estratégicos, como energia, alimentos e água.
A verdade é que tudo isso demonstra que o golpe tem como estratégia econômica o crescimento baseado no investimento privado estrangeiro, que aplicaria seu dinheiro essencialmente na compra de nossos recursos naturais (petróleo, terras, água, biodiversidade, etc.) e na privatização selvagem do patrimônio público. E demonstra também que o golpe tem como estratégia geopolítica colocar o Brasil, de novo, na órbita dos interesses dos EUA e aliados.
No fundo, é uma volta a um Brasil colônia, que passaria a se integrar às “cadeias internacionais de valor” somente como produtor de commodities para as metrópoles ou como hóspede de “maquiladoras”, como o México. No fundo, o golpe veio para vender o Brasil.
Mas já há reações claras contra essa forte vertente antinacional do golpe. Inclusive em setores que apoiaram o golpe. Empresários que dependem do crédito e do investimento públicos querem que o BNDES volte a propiciar crédito facilitado.
Até o pato da FIESP, que foi às ruas pelo golpe, agora começa a perceber que seus interesses podem ser contrariados e pede a retomada da política de conteúdo nacional e do programa Minha Casa Minha Vida em toda a sua dimensão.
Setores do empresariado que achavam que o custo do golpe recairia inteiramente nas costas dos trabalhadores, agora percebem que também podem ser chamados a “pagar o pato”.
Em sua ânsia de favorecer o capital financeiro e os investidores estrangeiros, seus grandes fiadores, o governo golpista começa a desagradar alguns setores produtivos cujos interesses são diferentes do rentismo e das empresas sócias do capital internacional, bem como interesses sedimentados no aparelho de Estado.
No mundo inteiro, o nacionalismo ressurge com força, dada à frustração com a globalização “financeirizada”, que não consegue dar respostas para a grave crise. No Brasil, a aposta míope, ideológica e anacrônica nessa inserção subalterna “às cadeias internacionais de valor” poderá provocar, com o tempo, reação semelhante.
O fato concreto é que essa emergente luta nacional possibilitaria a agregação de segmentos bastante amplos e diversificados, como sindicatos de trabalhadores, empresários nacionais, diplomatas, militares, engenheiros, cientistas, petroleiros, prestadores de serviços, bancários, etc.
A exploração sistemática dessa luta nacional abre a possibilidade de alianças táticas com grupos e setores que não estão ainda envolvidos na oposição ao golpe.
Esse “entreguismo” caolho, ignorante e beócio, somado à inevitável continuidade da crise, que tende a permanecer e a se agravar com o ajuste permanente proposto pelo governo golpista, poderá sepultar, mais cedo do que se esperava, a agenda regressiva e irracional do golpe.
Aos poucos, a névoa de ódio contra o PT e a esquerda começa a se dissipar e cede lugar à saudade dos dias melhores do “Brasil para Todos” e a um sentimento amargo de que muitos dos que estiveram nas ruas foram ludibriados pela “turma da sangria”.
Muitas mentiras podem ser vendidas, especialmente quando se tem o controle da mídia. Mas, quando se tenta vender um país inteiro, a única verdade sempre aparece. E, no caso do golpe contra o Brasil, ela é muito feia.
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