sexta-feira, 25 de julho de 2014

Estado de direito e prisões de ativistas

Habeas Corpus libera 23

Luiz Flávio Gomes *, em JusBrasil Notícias, 24/07/14

Que se entende por Estado de direito? De acordo com a doutrina de Norberto Bobbio (em Ferrajoli 2014: 789), o Estado de direito (no mundo ocidental) significa duas coisas: governo sub lege, ou seja, submetido às leis e governo per leges, isto é, governo pautado por leis gerais e abstratas. O Estado de direito é o modelo de Estado (mais civilizado que o humano já inventou) em que todos estão submetidos à lei (na verdade, ao direito, do qual a lei faz parte), incluindo tanto o indivíduo como o próprio Estado. Não existe verdadeiro Estado de direito sem normas (válidas) reguladoras da atividade pública e privada (normas que fixam direitos, deveres e que impõem limites), sem a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) assim como sem a previsão de um conjunto de direitos fundamentais (seguindo a tradição do nosso direito –civil law -, esse conjunto normativo vem escrito ou positivado em várias fontes: leis, constituições e tratados internacionais). É inconcebível o Estado de direito com poderes desregulados e atos de poder sem controle. Todos os poderes são limitados por deveres jurídicos, relativos não somente à forma, mas também aos conteúdos do seu exercício, cuja violação é causa de invalidade judicial dos atos e, ao menos em teoria, de responsabilidade de seus autores (Ferrajoli: 2014: 790).

Os atos de vandalismo, sobretudo os praticados por meio de violência, de acordo com esse Estado de direito, são reprováveis (muitos deles, criminosos). Logo, não estão permitidos pelo ordenamento jurídico, porque vão muito além do direito de resistência e de manifestação que todos temos garantido pela Constituição (assim como pela tradição do estado liberal, desde Hobbes, Locke etc.). Mas não podemos punir os vândalos (e criminosos) de qualquer maneira, atrabiliariamente. O Estado de direito fixa a forma (e, nesse sentido, também a fôrma). Todo ato sancionador praticado por agentes do Estado que não respeita essa forma é ilegal e inconstitucional (para além de revelar nossa anomia crônica). Toda prisão desnecessária é tirania (já dizia Montesquieu, repetido por Beccaria). O crime de que os ativistas foram acusados (associação criminosa) é punido com pena de 1 a 3 anos de prisão. Quando armada a associação, a pena aumenta de metade (vai para um ano e meio a 4 anos e meio). No Brasil, toda pena até 4 anos (nos crimes não violentos) admite-se a substituição da prisão por penas alternativas. Logo, a chance de os ativistas serem presos, no final do processo, é remotíssima. Ora, se a pena final não implicará prisão, nenhum sentido tem a prisão preventiva, que é nula e irrita (gritando pela sua própria inconsistência), salvo por motivos cautelares genuínos (por exemplo: quando o réu ameaça uma testemunha).

Por força do Estado de direito, o que pode, pode, o que não pode, não pode. Todo ato inconstitucional e/ou ilegal, violador do Estado de direito, deve ser revogado. Ato que foge da forma (e da fôrma) é ato típico do Estado subterrâneo (quando se trata de uma prisão, ingressa-se na vertente subterrânea do Estado de polícia). O desembargador Siro Darlan, do TJRJ, cumprindo seu papel de “semáforo do ordenamento jurídico” (que está, a rigor, reservado a todos os juízes, consoante Zaffaroni), deu sinal vermelho para o ato ilegítimo do juiz e concedeu liberdade para todos eles. Ele disse: “Estou convicto de que não é necessária a prisão. Mas apliquei algumas medidas cautelares, como não se ausentar da cidade e comparecer regularmente à Justiça. Também mandei recolher os 23 passaportes” (Globo 24/7/14: 10). O juiz não teria individualizado a conduta de cada réu. Faltou, então, fundamentação legal idônea. Enquanto vigorar o Estado de direito no Brasil, o ato da prisão (em caso de extrema necessidade) não pode fugir dos estreitos limites impostos pelas leis, pela Constituição e pelos Tratados internacionais. Enquanto existirem juízes acolhedores do Estado de direito (enquanto existirem juízes em Berlim), não se justifica nenhum ato de “asilo” nas embaixadas ou consulados estrangeiros.

Grupos violentos (ou que pregam abertamente a violência: FIP, MEPR, “black blocs” etc. – que encaram o caminho legalista, parlamentar e pacifista como um caminho falido) devem ser devidamente investigados (com polícia de inteligência), processados e eventualmente condenados pelos seus abusos (típicos do estado de natureza, onde todos entram guerra contra todos, como dizia Hobbes). Porém, tudo dentro da legalidade e da razoabilidade. O “grampo” nos telefones dos advogados é de ilegalidade patente. O advogado tem direito ao sigilo nas suas comunicações com os clientes. Mais um ato nulo e irrito. Não tem nenhum valor jurídico a prova colhida a partir de um ato ilícito (prova ilícita). Já se disse que pior que os crimes dos criminosos são os crimes dos que atuam contra os criminosos. A linha divisória do Estado de direito para o Estado subterrâneo (de polícia) é muito tênue. O poder punitivo do Estado, portanto, deve ser manejado com extrema cautela e prudência (para não se enveredar para o mundo subterrâneo da ilicitude e/ou da inconstitucionalidade). Só podemos afirmar que o Brasil ainda conta com um Estado de direito (que não tem nenhuma eficácia frente a uma grande parcela da população: os desfavorecidos) quando os abusos são contidos (para eles tem que funcionar o semáforo vermelho, ou ingressaremos no caos total, já vivido pelos excluídos do Estado de direito).
Luiz Flávio Gomes
Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas] ]

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