Nos conhecemos na época em que era um cavalante e ajudava meu tio nas lides campeiras. Era um sujeito cheio de iniciativas, sempre alerta para as necessidades da estância. Não havia tempo feio, com chuva ou sol a pino, lá estava a conduzir os rebanhos. Até o dia em que o velho pecuarista foi visitar o patrão lá de cima e a família rifou as terras, pois geralmente os herdeiros pouco avaliam aquilo que lhes chega de graça.
Aí então o cavalante tornou-se um bicicletante na cidade, pois era inviável continuar com seu cavalo pelas ruas cobertas de paralelepípedos lisos qual sabão, ainda mais em dias de chuva quando até a pé era perigoso acelerar o passo. De peão de fazenda a vendedor de picolé no verão e de milho cozido no inverno, assim meu amigo conduziu sua vida por um bom tempo, aguardando outra oportunidade qualquer. Vieram os invernos, os verões e os anos se foram sem apresentar qualquer novo meio de vida. Cansou da espera. Desiludido seguiu para a estrada e virou um esmolante sem rumo, tampouco direção. Seguia os ventos. Hoje para lá e amanhã acolá.
Em sua cabeça não existia o presente nem o futuro. Vivia a ruminar as boas lembranças de um passado que lhe fora generoso quando viveu como gente de verdade. Alguém útil prestando um serviço capaz de render-lhe a boa sobrevivência. Além de propiciar cavalgadas, mergulhos nas lagoas, comer frutas no pé, juntar pinhão, engraxar o bigode numa costela gorda, sorver o chimarrão ao cair da tarde e como não lembrar da chorosa gaita que lhe aliviava a alma nas noites de frio ao pé do braseiro. Com essas confortáveis imagens seguia pela beira da estrada até que numa curva foi colhido por um veículo sem rumo.
As luzes voltaram em um quarto de hospital ao lhe comunicarem o ocorrido e quais as seqüelas. Resignou-se e imaginou para quem um dia já foi cavalante, bicicletante e esmolante pouca diferença faria em se transformar num cadeirante. E assim, com os passos limitados, foi acolhido numa casa de recuperação onde passa os dias sob os cuidados de uma prestativa enfermeira que adora contação de histórias e acredita que desta forma leva conforto aos deficientes do abrigo. Meu amigo não esperava nada, logo adaptou-se à sua nova maneira de sentar e andar. Assim o que viesse seria lucro e veio após alguns dias quando percebeu que além de cavalante, bicicletante, esmolante e cadeirante tornara-se também escutante da jovem narradora.
Fonte: Blog do Gil Rikardo, 14/02/2012
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