sexta-feira, 13 de junho de 2014

A polícia prende e a justiça solta (?)

Gerivaldo Neiva *

Já ouvi dezenas de vezes o comentário de que a "polícia prende e a justiça solta", seja em Conceição do Coité (Ba) ou em outras comarcas em que fui Juiz de Direito. É uma situação constrangedora para um Juiz de Direito ouvir este comentário, principalmente em relação à comunidade em que está inserido. Aqui em Coité, por exemplo, nesses tempos de mortes violentas, este comentário retorna com intensidade nas ruas, praças, feira livre, botecos, salões de beleza e redes sociais.

Imagino que o comentário seja mais ou menos assim: “Ora, de que adianta a atuação da polícia militar nas ruas prendendo criminosos em flagrante se o juiz vai determinar a soltura deles quando o caso chegar à justiça?” Em casos mais extremos, seguindo a lógica perversa e desumana de alguns comentaristas de telejornais ou de programas de TV voltados para o problema da violência, sei que pessoas defendem, esquecendo-se da sua própria humanidade e princípios religiosos, a prisão perpétua, suplícios de há muito banidos da ordem jurídica e até mesmo a pena de morte.

Pois bem, o caso não é assim tão simples e merece sempre alguns comentários e esclarecimentos.

Primeiro, é preciso ter sempre em mente que vivemos em um momento histórico que é fruto das conquistas de gerações passadas. Assim, se temos liberdade de expressão nas redes sociais, se podemos votar em diretor de escola e de vereador a presidente da república, se temos liberdade de imprensa, se temos uma lei de transparência que nos permite acompanhar para onde vai o dinheiro público, se temos um sistema legislativo de proteção aos direitos humanos, a crianças e adolescentes, idosos, deficientes físicos e outras categorias excluídas ou vulneráveis e, por fim, se temos uma estrutura de justiça criminal que nos garante o devido processo legal e o direito de defesa, devemos tudo isso às gerações passadas que lutaram e morreram nesta luta. Por fim, os conceitos de cidadania e dignidade da pessoa humana são frutos de muita luta e representam conquistas históricas da humanidade.

Sendo assim, ao menos por respeito à memória desses tantos heróis anônimos, não podemos nunca esquecer que tudo isso representa a conquista do Estado Democrático de Direito e que não podemos jamais permitir retrocessos do tipo “justiça com as próprias mãos”, “bandido bom é bandido morto” ou a prática de suplícios, como por exemplo a tortura, de há muitos anos banidos da ordem jurídica.

Pois bem, ao adotarmos a prática do respeito aos direitos humanos, de todos os humanos e não só de “bandidos”, e do respeito ao contraditório, ampla defesa e do devido processo legal, ou seja, de que todo acusado, seja de que crime for, tem o direito de ser processado com respeito às leis vigentes, não podemos perder de vista jamais que nossa vontade pessoal, seja do policial militar ou do juiz, não pode prevalecer em detrimento das garantias constitucionais. Logo, mesmo que a vontade pessoal do soldado ou da comunidade seja de que o criminoso permaneça preso por muitos anos, ou mesmo que o juiz pense da mesma forma, existe algo que prepondera sobre as vontades pessoais: o Direito!

Sei que muitos agora comentariam: “sim, mas o Direito só serve para proteger “bandidos” e não está conseguindo dar respostas à demanda atual, permitindo o aumento da violência e criminalidade.” Em resposta, argumentaria que o Direito serve para proteger o direito de todos, mas é fato que o Direito Penal, infelizmente, não está conseguindo estabelecer a paz social que tanto almejamos. Esta conclusão, de outro lado, embora pareça lastimável, termina nos permitindo a compreensão que não é o Direito Penal e nem a prisão que tem o poder de estabelecerem a paz social, ou seja, não se resolve problemas sociais históricos com cadeia e castigos.

Voltando ao tema inicial, no Estado Democrático de Direito, a polícia militar tem função de policiamento ostensivo nas ruas e, neste papel, evidentemente, seus agentes podem e devem efetuar prisões em flagrante de quem esteja cometendo crime. Feito isso, o preso é encaminhado, garantindo-se sua integridade física, à Delegacia de Polícia para lavratura do Auto de Prisão em Flagrante. Aqui, exatamente, está encerrado o papel constitucional do policial militar, ou seja, prender em flagrante e assinar o auto como condutor ou testemunha. O que vai acontecer em seguida não diz respeito à atividade policial militar e o soldado pode até expressar sua vontade pessoal em conversas reservadas ou em redes sociais, mas tem a obrigação de se curvar ao que a ordem jurídica vigente destina à pessoa que ele prendeu em flagrante. Pode ser, por exemplo, que o Delegado de Polícia, sendo o caso, arbitre fiança e libere o preso ou pode ser que represente pela prisão preventiva, mas o representante do Ministério Público pode entender que não seja o caso de prisão preventiva e requerer ao Juiz o deferimento da liberdade provisória ou nulidade do flagrante, por exemplo. Da mesma forma, pode ser que o Juiz, apesar do requerimento do Ministério Público, entenda que não seja o caso da prisão preventiva e liberte o preso, aplicando medidas cautelares. Por fim, pode ser que o Juiz entenda, assim como o Delegado e o representante do Ministério Público, que seja o caso, realmente, de decretação da prisão preventiva do preso. No final, não é o Juiz que solta, mas é o preso que tem o direito de responder em liberdade e o papel do Juiz é, simplesmente, garantir este direito. Aqui não vamos comentar sobre os casos de suborno de membros do Poder Judiciário, que são muitos, quando se trata de crimes de colarinho branco ou mesmo para favorecer o Poder, pois isto não é o Direito! Isto é caso de polícia!

* Juiz de Direito (Ba).

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