Um dos maiores especialistas do país em distribuição de renda, o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV-RJ, diz que o Brasil vive um "filme dramático" após uma década de avanços. "Nossa trajetória positiva dos últimos anos está em risco."
Ex-ministro e economista da FGV, Marcelo Neri |
Ex-presidente do Ipea e ex-ministro da SAE/PR, Neri diz que os mais pobres vinham "bombando" por conta do mercado de trabalho até o governo Dilma 2, que agora entra em uma espiral de rápido aumento do desemprego.
"Quando analisamos os motivos de a renda ter crescido e a desigualdade caído, não é tanto por causa do Bolsa Família ou do impacto do salário mínimo sobre a Previdência. O principal foi o peso da renda do trabalho, formal e informal", afirma.
O quadro nesta página mostra o peso da renda do trabalho e de outras fontes entre 2001 e 2013. A renda do trabalho foi preponderante entre os 40% mais pobres e na média da população.
"O pobre da última década não foi uma cigarra consumidora. Mas um trabalhador que teve grande evolução em sua renda por meio do seu esforço." Leia a entrevista:
Folha - Entre 2003 e 2013, o PIB per capita no Brasil cresceu 30% e a renda média, 58%. As chamadas classes A, B e C incorporaram cerca de 56 milhões de pessoas. Para este ano há uma projeção de queda de 2% do PIB e de 0,15% em 2016, com perspectiva de baixo crescimento no futuro. Qual o impacto disso sobre os avanços conquistados?
Marcelo Neri - Nesse período da última década houve uma combinação de elementos que a tornaram especial. Não foi tanto o crescimento do PIB, mas o fato de ele ter crescido de maneira relativamente contínua, o que não acontecia há muito tempo.
O segundo componente é que a renda das pessoas cresceu bem mais do que o PIB. O terceiro é que esse crescimento se deu mais forte na base da distribuição, com a redução da desigualdade.
A combinação dessas três coisas por um longo período gerou esse boom social. É o que a gente pode chamar de um "caminho do meio". Não foi só crescimento, mas houve redução da desigualdade e aumento do bem-estar.
Quando analisamos os motivos de a renda ter crescido e a desigualdade caído, não é por causa do Bolsa Família, que foi importante, mas significou menos de 20% de efeito sobre a desigualdade. Também não foi por causa do impacto do salário mínimo sobre a Previdência, que desempenhou algum papel. O principal foi a renda do trabalho, formal e informal.
O que é mais surpreendente é que desde 2011, quando o PIB parou de crescer, a renda média das pessoas continuou subindo acima do PIB, de maneira até mais forte.
O ano de 2012 foi o do Pibinho. Enquanto a renda per capita subiu 7,5%, o PIB per capita cresceu menos do que 1%. No biênio 2012 e 2013, a renda cresceu 5,5% per capita ao ano, já descontando a inflação, enquanto o PIB andou bastante de lado.
Estamos no final desse ciclo. Vamos voltar para trás agora? Certamente, mas não voltaremos para o começo nem para o meio do caminho, espero. Teríamos que passar por uma crise muito forte, com desajustes crescentes.
Entramos na crise com uma taxa de desemprego bem menor do que em outros momentos ruins, como em 2003 e 1999. Com mais empregos formais e mais gastos sociais. Isso impedirá que a desigualdade aumente drasticamente?
Exatamente. É verdade que a taxa de desemprego está subindo muito rapidamente. Voltamos cinco anos nesse item. Foi uma reversão muito rápida, que veio acompanhada de redução de salários, o que teve um impacto maior na queda da renda.
A fotografia de hoje é mais ou menos a de 2010, quando se cogitava se iríamos entrar ou não em uma situação de pleno emprego. E estamos indo para o outro lado, passando por uma reversão grande e rápida. Mas, levando em conta os níveis das séries, ainda não é muito ruim. O problema é se entrarmos em uma situação de crise crônica.
Estamos vivendo um filme dramático, com reversão de tendências muito rápidas.
Mas ainda temos uma fotografia razoável. É como se o sujeito achasse que tinha ganho na loteria e descobrisse que não, que os números sorteadores eram outros. Ele achou que tinha ido para o céu, mas continua na terra. Não é que ele tenha ido parar no inferno.
O problema é que renda e emprego são os fundamentos da segurança familiar. E estão caindo. Ir do céu à terra pode parecer, para alguns, como ir da terra para o inferno.
Muitos economistas afirmam que a geração da nova classe média foi baseada em mais renda e consumo. Mas que o aumento do crédito foi o grande combustível do processo, que se esgotou agora.
O crédito ajudou nesse ciclo de expansão, mas houve aumento na renda das pessoas. É aquela brincadeira: classe C de "crédito"? De "consumo"? É muito mais de "carteira de trabalho assinada", que foi o que segurou as pessoas. Esse processo continuou até 2014, com alguma flutuação. Vale lembrar que a renda em dezembro de 2014 ainda crescia 2,5% per capita reais (acima da inflação).
Além do aumento da renda entre os mais pobres e da sua melhor distribuição, o que mais houve de avanços nesses 13 anos?
Houve outras mudanças. Em 2000, 45% dos municípios brasileiros tinham um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) abaixo de 0,5. Em 2010, estavam perto de 0,6 (quanto mais próximo de 1, melhor). Houve, portanto, uma transformação profunda. E não é só renda.
Há mais expectativa de vida, mais crianças na escola, etc. Essas mudanças incluíram trabalho formal também. E essa é uma característica fundamental, além da redução da desigualdade com crescimento.
Mas em termos de produtividade o Brasil não fez seu dever de casa. Essa é uma agenda fundamental e é consenso entre os economistas que precisamos dar saltos de produtividade para crescer.
O Brasil também precisa de uma série de reformas, macro e microeconômicas. Outra agenda que encontra muita resistência é da poupança. No Brasil não se acredita muito nas virtudes da poupança. E perdemos uma grande oportunidade de que a crise fosse menos sentida pela população por conta disso. A poupança brasileira hoje equivale a um quarto da das famílias chinesas.
O sr. ainda estava no governo durante a campanha eleitoral de 2014. Ficou claro que houve uma fraude eleitoral, já que Dilma fez tudo ao contrário do que prometeu. Qual sua avaliação?
Não gostei da campanha e isso foi particularmente duro para quem estava lá dentro. Houve um erro na campanha. Até mesmo da própria ótica de quem quer se manter no governo. Não vejo sentido em anunciar que você vai ser expansionista e depois virar conservador de uma hora para outra. Você acaba não ganhando nada com isso. O resultado foi o pior dos mundos.
Entramos em uma grande armadilha. E o problema é que agora estamos em um momento diferente de um debate acalorado e violento de uma campanha eleitoral, que tem uma duração limitada. Ainda faltam três anos e meio até o final do mandato e isso me preocupa muito.
Vai depender das expectativas e da capacidade das pessoas de perceberam que, se não for achada uma solução conjunta, a gente pode acabar perdendo muito mais tempo do que deveria.
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