MARCELO COELHO/COLUNISTA DA FOLHA
1 - Foi o maior escândalo político da história do país?
Não, se considerarmos só o total das somas envolvidas. O escândalo
recente dos fiscais da Prefeitura de São Paulo trouxe prejuízos
calculados em R$ 500 milhões aos cofres públicos. O dinheiro desviado
por Henrique Pizzolato do Fundo Visanet, e por extensão do Banco do
Brasil, corresponde, em valores corrigidos, a cerca de um terço disso, e
foi a principal fonte do mensalão.
Sim, se considerarmos que
envolveu, num mesmo esquema, o primeiro escalão de três partidos (PT, PL
e PTB), além de membros do PMDB, o presidente da Câmara dos Deputados,
três ministros, entre os quais o homem forte do governo Lula, banqueiros
e parlamentares.
2- O mensalão existiu? Não era só campanha?
No começo, negou-se até a existência de saques em dinheiro. Houve quem
dissesse ter ido ao banco só para pagar TV a cabo. Descoberta a mentira,
veio a tese de que o dinheiro não visava comprar deputados:
distribuíram-se só recursos não-declarados de campanha para
parlamentares, que em seguida os repassaram a diretórios.
Pela
lei, não importa o destino dado ao dinheiro "extra". Pode ser para
comprar objetos de luxo ou... para garantir mais votos, cabos eleitorais
e crédito na compra de material publicitário para a próxima eleição.
Sobrou a tese ridícula de que o mensalão "nunca existiu" porque a
propina não era mensal.
3- Qual é a lógica de comprar votos de deputados da própria base?
Argumentou-se que não havia corrupção porque o apoio de deputados
petistas e de partidos aliados já estava garantido, mesmo antes de
votações polêmicas no Congresso, como a da reforma previdenciária.
Dizer isso é ignorar as célebres "rebeliões" de deputados às vésperas
de qualquer votação. Tanto mais no caso da reforma da Previdência
proposta por Lula, que negava compromissos do partido, e motivou a
saída, por exemplo, de Heloísa Helena e outros do PT.
Ademais,
por que não enviar o suposto dinheiro de "caixa 2" diretamente aos
diretórios regionais, em vez de fazê-lo passar pelos deputados?
4- Os envolvidos no esquema formaram uma quadrilha?
Sim, se se considera que estiveram associados durante muito tempo para
manter em funcionamento o esquema. Não, se se considera que uma coisa é
participar em conjunto de uma série de crimes, outra é cometer um crime
particular, específico, o da "formação de quadrilha".
Neste
caso, o que a lei proíbe não é praticar crimes em grupo, mas criar um
grupo que, mesmo sem cometer crime, constitui ameaça à paz pública. Um
bando armado de porretes, gritando palavras ameaçadoras, não comete
crime --exceto o de formar quadrilha, trazendo inquietação. O STF
voltará a debater o assunto em 2014.
5- O mensalão representou uma ameaça à democracia?
Na medida em que pressupunha pagamento direto a deputados, dissolvia as
próprias instâncias internas dos partidos. Dinheiro público foi usado
para ajudar as contas do partido no poder.
Mas quando se sabe
que parlamentares podiam ser eleitos por um partido e em seguida aderir
ao partido do governo, é difícil considerar a compra de votos, em
dinheiro vivo, pior que a compra de um deputado por inteiro, em troca de
cargos ainda mais lucrativos.
O sistema do mensalão terá
parecido, talvez, mais econômico para o governo do que a negociação de
emendas no Orçamento para aliados.
6- Houve mais rigor neste caso do que em outros escândalos?
Sim, o que não quer dizer que as denúncias ocorreram por se tratar de um governo petista.
Notícias gravíssimas foram veiculadas contra FHC, por exemplo. A
confissão de dois deputados, segundo a qual receberam dinheiro para
votar a emenda da reeleição, foi noticiada pela Folha; a denúncia não
foi levada adiante pelas autoridades, que impediram uma CPI.
Também por falha nas acusações do Ministério Público, as acusações
contra o presidente Fernando Collor --que lhe custaram o mandato-- não
foram aceitas pelo STF.
7- O STF decidiu pressionado pela mídia?
Se fosse assim, a maioria não teria votado pela aceitação dos embargos
infringentes. Petistas como Luiz Gushiken, professor Luizinho, Paulo
Rocha, e o ex-ministro Anderson Adauto (PMDB) estariam condenados. As
penas contra os banqueiros não teriam sido as mais altas.
A
opinião pública, de modo geral, lamentou a condenação de Genoino; mesmo
no STF houve quem afirmasse estar tendo de condená-lo contra a vontade.
Se a vontade de "sair-se bem" tornava-se visível nos pronunciamentos de
alguns ministros, cabe lembrar que o autor dos mais furiosos discursos
contra os mensaleiros, Gilmar Mendes, é o mesmo que suscitou ira popular
ao conceder liberdade para Daniel Dantas, em 2008.
8 - As penas impostas pelo STF foram desproporcionais ou exageradas?
Pelo menos num caso, o de Jacinto Lamas, sim: ele terminou sendo
condenado de forma mais severa do que o seu superior no PL, Valdemar
Costa Neto, por um número praticamente igual de crimes de lavagem de
dinheiro.
O cálculo das penas foi muito confuso, pois às vezes
prevaleciam os critérios mais brandos de Ricardo Lewandowski, outras
vezes os de Joaquim Barbosa.
De modo geral, a lei é muito mais
severa no caso de crimes financeiros, levando a penas altíssimas contra
os banqueiros do esquema. Como se repetem ao longo de uma mesma armação
delitiva, nem um homicídio dá tantos anos de cadeia.
9- José Dirceu foi condenado sem provas?
Não há gravação ou e-mail mostrando claramente que Dirceu dava ordens a
cada reunião em que Delúbio Soares, dirigentes partidários e Marcos
Valério faziam acertos sobre pagamentos.
Houve testemunho, não
só de Roberto Jefferson, de que ele era consultado pelo celular e dava
seu "ok". A defesa colheu testemunhos supostamente em contrário, junto a
dirigentes regionais do PT, segundo os quais Dirceu não participava dos
assuntos financeiros.
Mas isso não desmente a acusação de que
ele chefiava politicamente o esquema, nem explica sua participação em
encontros com Valério e dirigentes do Banco Rural. A tese de que
simplesmente conversaram sobre assuntos gerais simplesmente não
convenceu a maioria do STF.
10- O julgamento foi uma vitória contra a corrupção?
O problema é saber se, com as condenações obtidas, algum político vai
pensar em modificar seus comportamentos nessa área. Provavelmente não.
Mesmo quem não pretende enriquecer pessoalmente com suas atividades no
Executivo ou no Parlamento --e certamente José Genoino sempre se pautou
por uma vida simples, por exemplo --depende de campanhas cada vez mais
caras para se eleger.
A possibilidade de obter recursos apenas
pelo fundo partidário e pelas contribuições de simpatizantes é muito
pouco realista; gastos com viagens, marqueteiros e propaganda são
financiados por grandes bancos, construtoras e empresas, que
naturalmente esperam vantagens em troca, seja em contratos com o setor
público, seja em atos de governo ou votos no Legislativo. Há muitas
maneiras de comprar deputados; o mensalão foi apenas explícito demais.
Fonte: Folha de S Paulo, 17/11/13