As torturas e assassinatos foram a marca mais violenta do período da
ditadura. Pensar em direitos humanos era apenas um sonho. Havia até um
manual de como os militares deveriam torturar para extrair confissões,
com práticas como choques, afogamentos e sufocamentos.
"As restrições às liberdades e à participação política reduziram a
capacidade cidadã de atuar na esfera pública e empobreceram a circulação
de ideias no país", diz o diretor-executivo da Anistia Internacional
Brasil, Atila Roque.
Sem os direitos humanos, as torturas
contra os opositores ao regime prosperaram. Até hoje a Comissão Nacional
de Verdade busca dados e números exatos de vítimas do regime.
"Os agentes da ditadura perpetraram crimes contra a humanidade
--tortura, estupro, assassinato, desaparecimento-- que vitimaram
opositores do regime e implantaram um clima de terror que marcou
profundamente a geração que viveu o período mais duro do regime
militar", afirma.
Para Roque, o Brasil ainda convive com um
legado de "violência e impunidade" deixado pela militarização. "Isso
persiste em algumas esferas do Estado, muito especialmente nos campos da
justiça e da segurança pública, onde tortura e execuções ainda fazem
parte dos problemas graves que enfrentamos", complementa.
2. Censura e ataque à imprensa
Uma das marcas mais conhecidas da ditadura foi a censura. Ela atingiu a
produção artística e controlou com pulso firme a imprensa.
Os
militares criaram o "Conselho Superior de Censura", que fiscalizava e
enviava ao Tribunal da Censura os jornalistas e meios de comunicação que
burlassem as regras. Os que não seguissem as regras e ousassem fazer
críticas ao país, sofriam retaliação --cunhou-se até o slogan "Brasil,
ame-o ou deixe-o."
Não são raras histórias de jornalistas que
viveram problemas no período. "Numa visita do presidente (Ernesto)
Geisel a Alagoas, achamos de colocar as manchetes no jornalismo da TV:
'Geisel chega a Maceió; Ratos invadem a Pajuçara'. Telefonaram da
polícia para o Pedro Collor [então diretor do grupo] e ele nos chamou na
sala dele e tivemos que engolir o afastamento do jornalista Joaquim
Alves, que havia feito a matéria dos ratos", conta o jornalista Iremar
Marinho, citando que as redações eram visitadas quase que diariamente
por policiais federais.
Muitos jornalistas sofreram processos com base na lei mesmo após a
redemocratização. "Fui processado em 1999 porque publiquei declaração de
Fulano contra Beltrano. A Lei de Imprensa da Ditadura permitia isso:
punir o mensageiro, que é o jornalista", conta o jornalista e blogueiro
do UOL, Mário Magalhães.
3. Amazônia e índios sob risco
No governo militar, teve início um processo amplo de devastação da
Amazônia. O general Castelo Branco disse, certa vez, que era preciso
"integrar para não entregar" a Amazônia. A partir dali, começou o
desmatamento e muitos dos que se opuseram morreram.
"Ribeirinhos, índios e quilombolas foram duramente reprimidos tanto ou
mais que os moradores das grandes cidades", diz a jornalista paraense e
pesquisadora do tema, Helena Palmquist.
A ideia dos militares
era que Amazônia era "terra sem homens", e deveria ser ocupada por
"homens sem terra do Nordeste." Obras como as usinas hidrelétricas de
Tucuruí e Balbina também não tiveram impactos ambientais ou sociais
previamente analisados, nem houve compensação aos moradores que deixaram
as áreas alagadas. Até hoje, milhares que saíram para dar lugar às
usinas não foram indenizados.
A luta pela terra foi
sangrenta. "Os Panarás, conhecidos como índios gigantes, perderam dois
terços de sua população com a construção da BR-163 --que liga Cuiabá a
Santarém (PA). Dois mil Waimiri-Atroaris, do Amazonas, foram
assassinados e desaparecidos pelo regime militar para as obras da
BR-174. Nove aldeias desse povo desapareceram e há relatos de que pelo
menos uma foi bombardeada com gás letal por homens do Exército", afirma.
4. Baixa representação política e sindical
Um dos primeiros direitos outorgados aos militares na ditadura foi a
possibilidade do governo suspender os direitos políticos do cidadão. Em
outubro de 1965, o Ato Institucional número 2 acabou com o
multipartidarismo e autorizou a existência de apenas dois: a Arena, dos
governistas, e o MDB, da oposição.
O problema é que existiam
diversas siglas, que tiveram de ser aglutinadas em um único bloco, o que
fragilizou a oposição. "Foi uma camisa-de-força que inibiu, proibiu e
dificultou a expressão político-partidária. A oposição ficou muito mal
acomodada, e as forças tiveram que conviver com grandes contradições",
diz o cientista político da Universidade Federal de Pernambuco, Michael
Zaidan.
As representações sindicais também foram duramente
atingidas por serem controladas com pulso forte pelo Ministério do
Trabalho. Isso gerou um enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na
primeira metade do período de repressão.
"Existiam as leis
trabalhistas, mas para que elas sejam cumpridas, com os reajustes, é
absolutamente necessário que os sindicatos judicializem, intervenham
para que os patrões respeitem. Essas liberdades foram reprimidas à
época. Os sindicatos eram compostos mais por agentes do governo que
trabalhadores", lembra Zaidan.
5. Saúde pública fragilizada
Se a saúde pública hoje está longe do ideal, ela ainda era mais
restrita no regime militar. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento, com seus
hospitais, mas era exclusivo aos trabalhadores formais.
"A
imensa maioria da população não tinha acesso", conta o cardiologista e
sindicalista Mário Fernando Lins, que atuou na época da ditadura. Surgiu
então a prestação de serviço pago, com hospitais e clínicas privadas.
"Somente após 1988 é que foi adotado o SUS (Sistema Único de Saúde),
que hoje atende a uma parcela de 80% da população", diz Lins.
Em
1976, quase 98% das internações eram feitas em hospitais privados. Além
disso, o modelo hospitalar adotado fez com a que a assistência primária
fosse relegada a um segundo plano. Não existiam planos de saúde, e o
saneamento básico chegava a poucas localidades. "As doenças
infectocontagiosas, como tuberculose, eram fonte de constante
preocupação dos médicos", afirma Lins.
Segundo estudo do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), "entre 1965/1970
reduz-se significativamente a velocidade da queda [da mortalidade
infantil], refletindo, por certo, a crise social econômica vivenciada
pelo país".
6. Linha dura na educação
A educação brasileira passou por mudanças intensas na ditadura. "O
grande problema foi o controle sobre informações e ideologia, com o
engessamento do currículo e da pressão sobre o cotidiano da sala de
aula", sintetiza o historiador e professor da Universidade Federal de
Alagoas, Luiz Sávio Almeida.
As disciplinas de filosofia e
sociologia foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e
Política Brasileira, caracterizada pela transmissão da ideologia do
regime autoritário, exaltando o nacionalismo e o civismo dos alunos e,
segundo especialistas, privilegiando o ensino de informações factuais em
detrimento da reflexão e da análise) e Educação, Moral e Cívica. Ao
mesmo tempo, com o baixo índice de investimento na escola pública, as
unidades privadas prosperaram.
Na área de alfabetização, a
grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização),
uma resposta do regime militar ao método elaborado pelo educador Paulo
Freire, que ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo na mesma época
em que foi considerado "subversivo" pelo governo e exilado.
Segundo o
estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do Inep (Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministério da Educação, o Mobral
foi um "retumbante fracasso."
Os problemas também chegaram às
universidades, com o afastamento delas dos centros urbanos e a
introdução do sistema de crédito. "A intenção do regime era evitar
aglomeração perto do centro, enquanto o sistema de crédito foi criado
para dispersar os alunos e não criar grupos", diz o historiador e
vice-reitor do Fejal (Fundação Educacional Jayme de Altavila), Douglas
Apratto.
7. Corrupção e falta de transparência
No período da ditadura, era praticamente impossível imaginar a
sociedade civil organizada atuando para controlar gastos ou denunciando
corrupção. Não havia conselhos fiscalizatórios e, com a dissolução do
Congresso Nacional, as contas públicas não eram analisadas, nem havia
publicidade dos gastos públicos, como é hoje obrigatório.
"O
maior antídoto da corrupção é a transparência. Durante a ditadura,
tivemos o oposto disso. Os desvios foram muitos, mas acobertados pela
força das baionetas", afirma o juiz e um dos autores da Lei da Ficha
Limpa, Márlon Reis.
Reis afirma que, ao contrário dos anos de
chumbo, hoje existem órgãos fiscalizatórios, imprensa e oposição livres e
maior publicidade dos casos. "Estamos muito melhor agora, pois podemos
reagir", diz.
Outro ponto sempre questionado no período de
ditadura foram os recursos investidos em obras de grande porte, cujos
gastos eram mantidos em sigilo.
"Obras faraônicas como Itaipu,
Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram realizadas sem
qualquer possibilidade de controle. Nunca saberemos o montante
desviado", disse Reis. "Durante a ditadura, a corrupção não foi uma
política de governo, mas de Estado, uma vez que seu principal escopo foi
a defesa de interesses econômicos de grupos particulares."
8. Nordeste mais pobre e migração
A consolidação do Nordeste como região mais pobre do país teve grande
participação do governo do militares. "Nenhuma região mudou tanto a
economia como o Nordeste", diz o doutor em economia regional Cícero
Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas.
Com as políticas adotadas, a região teve um crescimento da pobreza.
"Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores indicadores
nacionais de índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade
infantil e alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres no
Nordeste aumentou de 19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação
no total de pobres do país subiu de 43% para 53%", afirma Péricles
O crescimento urbano registrado teve como efeito colateral a migração
desregulada. "O modelo urbano-industrial reduziu as atividades
agropecuárias, que eram determinantes na riqueza regional, com 41% do
PIB, para apenas 14% do total em 1990", diz Péricles.
Enquanto o
campo era relegado, as atividades urbanas saltaram, na área industrial,
de 12% para 28% e, na área do comércio e serviços, de 47% para 58%.
"A migração gerou mais pobreza nas cidades, sem diminuir a miséria no
campo. A população do campo reduziu-se a um terço entre 1960 e 1990",
acrescenta Péricles.
9. Desigualdade: bolo cresceu, mas não foi dividido
"É preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". A frase do
então ministro da Fazenda Delfim Netto é, até hoje, uma das mais
lembradas do regime militar. Mas o tempo mostrou que o bolo cresceu,
sim, ficou conhecido como "milagre brasileiro", mas poucos comeram
fatias dele.
A distribuição de renda entre os estratos sociais
ficou mais polarizada durante o regime: os 10% dos mais ricos que tinham
38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais
pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas
décadas depois.
Assim, na ditadura houve um aumento das
desigualdades sociais. "Isso levou o país ao topo desse ranking
mundial", diz o professor de Economia da Universidade Federal de
Alagoas, Cícero Péricles.
Entre 1968 e 1973, o Brasil cresceu
acima de 10% ao ano. Mas, em contrapartida, o salário mínimo --que vinha
recuperando o poder de compra nos anos 1960-- perdeu com o golpe. "Em
1974, em pleno 'milagre', o poder de compra dele representava a metade
do que era em 1960", acrescenta Péricles.
"As altas taxas de
crescimento significavam mais oportunidades de lucros altos, renda e
crédito para consumo de bens duráveis; para os mais pobres, assalariados
ou informais, restava a manutenção de sua pobreza anterior", explica o
economista.
10. Precarização do trabalho
Apesar de viver o "milagre brasileiro", a ditadura trouxe defasagem aos
salários dos trabalhadores. "Nossa última ditadura cívico-militar foi,
em certo ponto, economicamente exitosa porque permitiu a asfixia ao
trabalho e, por consequência, a taxa salarial média", diz o doutor em
ciências sociais e blogueiro do UOL, Leonardo Sakamoto.
Na época da ditadura, a lei de greve, criada em 1964, sujeitava as
paralisações de trabalhadores à intervenção do Poder Executivo e do
Ministério Público. "Ir à Justiça do Trabalho para reclamar direitos era
possível, mas pouco usual e os pedidos eram minguados", explica
Sakamoto.
"Nada é tão atrativo ao capital do que a possibilidade
de exercício de um poder monolítico, sem questionamentos", diz
Sakamoto, que cita a asfixia dos sindicatos, a falta de liberdade de
imprensa e política foram "tão atraentes a investidores que isso
transformou a ditadura brasileira e o atual regime político e econômico
chinês em registros históricos de como crescimento econômico acelerado e
a violência institucional podem caminhar lado a lado".
Fonte: Uol, 22/03/14