"O Congresso tornou-se uma casa reacionária mas ainda escuta o ronco das ruas", escreve Tereza Cruvinel
Brasil 247, 14 de junho de 2024, 17:21 h
Arthur Lira (Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)
O infame projeto que equipa o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio não pode seguir tramitando. Não deve ter relator nem texto substitutivo. Não pode ser novamente colocado em pauta. Seu único destino tem que ser o arquivamento por inconstitucionalidade, por tentar nos transformar numa sociedade teocrática e fundamentalista, violando o princípio constitucional do Estado laico.
Nesta sexta-feira finalmente o Governo saiu do silêncio e juntou-se às vozes que nas últimas horas condenaram a proposta. Depois que a primeira dama Janja o criticou como absurdo e inaceitável nas redes, o ministro Alexandre Padilha avisou que o Governo será contra. Outros governistas estão saindo da muda. O presidente Lula deve pronunciar-se oficialmente quando já estiver no Brasil.
A inspiração religiosa é que torna a proposta incompatível com o Estado laico. Foi a bancada evangélica que manobrou e pressionou pela aprovação do pedido de urgência, em apenas 24 segundos, na noite de quarta-feira, por voto simbólico dos líderes, poupando os apoiadores de ter seus nomes expostos no painel. Seu autor, o deputado Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ) já revelou a segunda intenção da manobra: “quero provar que Lula é a favor do aborto”. Lula ou qualquer presidente que honre a Constituição teria que vetá-lo, mesmo pagando um alto custo político.
Houve, porém, a mão do presidente da Câmara, Arthur Lira, na trama da situação. Dono da pauta, ele acolheu o pedido de urgência e escolheu a hora e a forma de colocá-lo em votação. Mais uma vez, Lira criou dificuldade para vender facilidade ao Governo. Tendo prometido a votação do mérito para semana que vem, já disse que não o fará com tanta pressa. E cobrará para, amparado em algum recurso jurídico, mandar o projeto para o único destino que merece, o vasto arquivo das proposições inconstitucionais, poupando o Senado de apreciá-lo e o presidente de vetá-lo, se aprovado.
Lira sabe criar dificuldades mas neste caso cometeu um erro de cálculo. O amplo repúdio já colou nele a armação. Rapidamente a sociedade entendeu que uma jovem estuprada que aborte após 22 semanas pegará 20 anos de cadeia, contra oito ou dez para seu estuprador. Pesquisa Quaest examinou 1,1 milhão de menções ao tema nas redes sociais, de quarta-feira para cá, concluindo que 52% são contra o projeto, e que apenas 15% o apoiam.
O que os governistas esperam é que, diante do desgaste, Lira busque uma recomendação jurídica da Casa para remeter o projeto à Comissão de Constituição e Justiça, onde uma declaração de inconstitucionalidade o mandaria para o arquivo. Não seria fácil, porque os bolsonaristas comandam a comissão presidida pela deputada extremista Caroline de Toni. A outra saída seria manter o projeto na gaveta indefinidamente mas isso não resolverá o problema. O bode continuará na sala, infestando o ambiente político.
Enquanto nada disso acontece (se acontecer), o repúdio e os protestos precisam continuar. O tema precisa se manter em evidência ao longo do final de semana. Os atos de rua das últimas horas precisam ser repetidos. O Congresso tornou-se uma casa reacionária mas ainda escuta o ronco das ruas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário