Até meados dos anos 90, o país tinha um único crematório. Hoje, já conta com 32 e ganhará mais uma dezena nos próximos meses. Fatores financeiros, culturais e até ambientais explicam tendência
O corpo do ex-presidente e senador Itamar Franco é levado, com honras, para um crematório na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 2011 Foto: Wellignton Pedro/Imprensa MG Ricardo Westin
A família respeitou o desejo de Jorge Amado. Logo após sua morte, em 2001, o corpo do escritor foi cremado e as cinzas foram espalhadas no arborizado jardim de sua casa, em Salvador, à sombra de uma mangueira. Sete anos mais tarde, o mesmo destino teriam os restos mortais de sua mulher, a escritora Zélia Gattai.
Aos poucos, o cemitério deixa de ser o único destino dos mortos no Brasil. Até meados dos anos 90, o país contava com um único crematório — o Crematório da Vila Alpina, em São Paulo. Hoje, já se contam 32, em todas as regiões. Outros 12 crematórios deverão ficar prontos nos próximos meses.
Nunca se havia ouvido falar de tantas personalidades cremadas no país — o banqueiro Olavo Setúbal (em 2008), o dramaturgo Augusto Boal (2009), o ex-vice-presidente José Alencar (2011), o ex-presidente e senador Itamar Franco (2011) e os atores Marcos Paulo (2012) e Walmor Chagas (2013).
Cinzas
A cremação é uma versão acelerada da decomposição natural. O procedimento se faz em imensos e potentes fornos a gás. A temperatura excede os 1.000 graus Celsius. O calor reduz o corpo a pó em apenas duas horas — em vez de anos, como ocorre com o cadáver enterrado na terra.
Dentro do caixão, o corpo é introduzido na câmara quente. O que resta do processo não são propriamente cinzas. Trata-se de algo que mais se assemelha a grãos grossos de areia. Ossos mais resistentes, como a rótula (o osso do joelho), saem quase inteiros do forno, ligeiramente quebradiços, e precisam ser triturados. A família recebe uma urna com algo em torno de 1,5 quilo de “cinzas”.
Há uma série de razões para que os brasileiros aos poucos optem pela cremação, e não pelo tradicional enterro no cemitério. Uma delas é de ordem financeira. A cremação custa a partir de R$ 300. Pode chegar a R$ 12 mil, a depender da qualidade do caixão e da urna. A maior parte dos crematórios do país é privada. Na cidade de São Paulo, onde o serviço é administrado pela prefeitura, o procedimento é gratuito para as famílias mais pobres. O sepultamento exige desembolsos consideráveis. Primeiro, as famílias precisam comprar um jazigo. Em cemitérios particulares de São Paulo, um túmulo chega a custar R$ 30 mil. Depois, as famílias têm de pagar taxas anuais ao cemitério e cuidar da manutenção do jazigo.
Questões religiosas também ajudam a explicar o crescimento das cremações. Até 50 anos atrás, a Igreja Católica — predominante no Brasil — não dava autorização para a cremação. A situação mudou no início dos anos 60, quando o Concílio Vaticano II anunciou que os fiéis não precisariam mais seguir à risca a oração conhecida como Credo, que diz “creio (...) na ressurreição da carne”. Para os católicos contemporâneos, o que ressuscita é a alma, e não o corpo.
Entre as principais religiões, o islamismo e o judaísmo não permitem a cremação. O espiritismo apenas pede que se aguardem de dois a três dias — há espíritos que precisam desse tempo para desencarnar. No hinduísmo e no budismo, predominantes em boa parte da Ásia, a cremação é um ritual obrigatório para que a alma se liberte do corpo.
Luto fechado
A dispersão de cinzas não oferece o risco de contaminar o lençol freático, como ocorre com o sepultamento de cadáveres. Na cremação, os gases são tratados de modo a não poluir o ar. Outro aspecto que conta a favor da cremação é o fato de não ocupar novos terrenos — em algumas capitais, já há cemitérios lotados.
A disseminação dos crematórios é mais um passo numa mudança de comportamento social iniciada décadas atrás. Antes algo público, a morte hoje é cada vez mais privada, quase imperceptível para quem vê de fora. Já não se morre em casa, rodeado de familiares e amigos, mas sim no isolamento do hospital. Os velórios deixam de ser feitos em casa, levados para o cemitério ou a capela do hospital — muitas vezes, simplesmente não se faz velório. Os próprios túmulos ficam discretos, sem capelas e estátuas sacras em tamanho real. Por fim, ninguém mais é compelido a cumprir aqueles velhos rituais do luto fechado e do meio-luto.
— Hoje nós nos comportamos como se ignorássemos a morte, como se quiséssemos afastá-la de nós. Parece que significa fracasso. Com a cremação, isso muda. Ao escolher entre o sepultamento e a cremação, a pessoa está pensando na morte, está encarando a morte. O mesmo vale para os familiares quando se veem envolvidos na discussão. É uma mudança de comportamento importante. A morte deixa de ser um tabu — explica Maria Helena Franco, psicóloga e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
O
que fazer Para que um corpo seja cremado
É necessário seguir alguns
trâmites burocráticos A pessoa precisa ter manifestado em vida a vontade
de ser cremada.
Para isso, ela deve redigir um documento expressando o desejo. A declaração de vontade precisa ser registrada em cartório.
Caso
a pessoa tenha expressado a vontade, mas não tenha elaborado um
documento e o registrado em cartório, um familiar que tenha ouvido a
manifestação (cônjuge, filho, neto, pai, avô ou irmão, nessa ordem) pode
se responsabilizar legalmente pela cremação.
A morte precisa ser atestada por um médico legista ou então por dois médicos de qualquer especialidade.
Em caso de morte violenta (decorrente de acidente, homicídio ou suicídio, por exemplo), a cremação precisa ser solicitada à Justiça. O juiz não autorizará a cremação se a polícia se opuser ao procedimento
— a análise posterior do cadáver pode ser necessária à investigação policial.
Em qualquer caso, é necessário esperar 24 horas, contadas a partir da morte, para que a cremação seja feita.
Lei superficial
Apesar do crescimento dos últimos anos, a cremação tem um longo caminho a percorrer no Brasil. Hoje, 98,5% dos mortos são sepultados e só 1,5% é cremado. Como comparação, os EUA cremam 37%. O Japão, nada menos que 99,9%.
— A cremação, por si, só ainda não é um negócio lucrativo no Brasil. É por isso que os crematórios sempre fazem parte de um cemitério. A tendência é mudar. Antes, os fornos precisavam ser importados. Hoje, já há fabricantes nacionais — diz Haroldo Felício, presidente do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil.
No aspecto legal, a cremação é abordada de forma breve e superficial numa lei dos anos 70, época em que se inaugurava o primeiro crematório, em São Paulo. Os brasileiros nem sequer entendiam exatamente do que se tratava. No Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) estuda um projeto de lei de Sérgio Souza (PMDB-PR), o PLS 474/2011, que cria regras mais claras e detalhadas para a cremação. A proposta diz, por exemplo, que as cinzas não podem ser espalhadas em locais com grande concentração de pessoas e que, para transportá-las, os familiares precisam portar uma autorização das autoridades sanitárias. O senador explica:
— Ao longo destes 40 anos, o Brasil mudou dramaticamente, incluindo os rituais fúnebres. Nós, no Congresso Nacional, precisamos atualizar as leis e acompanhar a evolução da sociedade e dos costumes.
Fonte: Jornal do Senado, 13/08/13