E por que a Bolívia não concedia o salvo-conduto ao asilado, como manda o Direito Internacional ?
Imaginemos o seguinte quadro político em 2014 – Dilma perde as eleições, vencidas por José Serra. E, no final do ano, o ministro Joaquim Barbosa encerra o julgamento de José Dirceu, condenado a dez anos de prisão.
Aproveitando as festas de fim-de-ano, Dirceu se refugia na embaixada da Bolívia. Seu advogado pede em vão ao governo brasileiro um salvo conduto e Dirceu parece condenado a passar sua vida numa sala da embaixada boliviana, onde se instala toda noite uma cama de campanha, desarmada no dia seguinte às sete da manhã.
Até que, utilizando-se de um político boliviano, em visita a Brasília, a embaixada boliviana consegue exfiltrar Dirceu, como chofer de taxi e, assim, ele viaja até chegar à Bolívia. O presidente Serra chama o embaixador boliviano, passa-lhe um sabão, ameaça cortar ajudas, mas Evo Morales condecora o embaixador boliviano, e recebe com festas o dirigente petista em La Paz.
A grande imprensa brasileira que hoje chama o ministro-conselheiro Eduardo Sabóia de herói, considera o embaixador boliviano um bandido e um traidor. E os petistas brasileiros que hoje chamam Eduardo Sabóia de vendido, fazem manifestaçõs de regozijo diante da casa do embaixador boliviano.
Toda essa históriazinha, talvez de mau gosto, me veio à cabeça, depois de ler os prós e contras publicados em papel ou na Internet sobre a exfiltração do senador boliviano Roger Molina (foto), da Bolívia. Só resta como hipótese plausível, um asilo de Dirceu numa embaixada amiga, no caso de confirmação de sua pena.
O diplomata Luiz Paulo Barreto, diretor do Conare, que votou pela extradição de Cesare Battisti, provocando até o risco de instabilidade institucional, quando o STF rejeitou a decisão do ministro da Justiça Tarso Genro dando refúgio a Battisti, publicou um texto, faz algum tempo, sobre asilo.
O asilo é coisa que vem de muito longe, já existia nas civilizações antigas, para proteger perseguidos por crimes comuns. Refugiavam-se nos templos religiosos, enquanto não havia as embaixadas. Em nossa época, passaram a existir dois tipos de asilo – o diplomático e o territorial. O espírito do asilo é o de sempre ser concedido a toda pessoa que se considera perseguida e com ameaça de ser presa ou morta.
O perseguido vai a uma embaixada e pede asilo que, por uma questão humanitária, é geralmente concedido. Trata-se do asilo diplomático, que, depois de algum tempo, vai se tornar territorial, com a transferência do asilado, protegido, por salvo conduto, ao país que concedeu o asilo. O outro tipo de asilo, ocorre quando o perseguido já pede o asilo dentro do país.
Em termos de Direito Internacional, todo país é obrigado a respeitar um asilo concedido, permitindo a saída do asilado com segurança para ir ao país que o acolheu. Foi graças ao asilo que centenas de brasileiros puderam escapar da prisão, logo depois do golpe de Pinochet no Chile, refugiando-se em embaixadas de países amigos. Ali ficaram um curto tempo, eram embaixadas lotadas de asilados. O Chile, apesar da repressiva ditadura de Pinochet, responsável por milhares de mortes, aceitou conceder salvo condutos.
Atualmente, o direito de asilo, por tantos séculos respeitado, e que chegou a ser utilizado por Voltaire e Vitor Hugo, vem sendo alvo de restrições, geralmente ditadas pelas grandes potências de direita, como EUA e Inglaterra, mas esse procedimento pode instigar pequenos países a fazerem o mesmo.
Embora não tenha ocorrido atos de invasões de embaixadas com asilados, já ocorreu um sério precedente envolvendo o americano Edward Snowden, por ter revelado o mecanismo mundial de espionagem dos EUA.
Assim, quando correu a informação de que Snowden tinha embarcado no avião presidencial do boliviano Evo Morales, os EUA conseguiram forçar a União Européia a não permitir o sobrevoo de seu território pelo avião presidencial. Correndo o risco de ficar sem combustível, o avião foi obrigado a descer na capital austríaca, Viena, onde policiais invadiram o aparelho, humilhando o presidente Evo Morales e a delegação boliviana, obrigados a deixar o aparelho para ser feita uma vistoria geral com o objetivo de prender Snowden se ali estivesse.
Ora, o asilo diplomático não significa sempre ser concedido dentro de uma embaixada. Pode também ser concedido dentro de um navio, avião ou prédio, que represente o país outorgante do asilo. Ou seja, os EUA desrespeitaram totalmente, em nome de sua segurança nacional, um direito mundial, reconhecido pela ONU e todos os países, ao invadir o avião do boliviano Evo Morales, onde afinal não estava Snowden.
Porém, antes dos EUA terem desrespeitado o direito de asilo e humilhado Evo Morales, presidente de um pequeno país, foi o próprio Evo Morales quem tinha desrespeitado o direito de asilo e humilhado o chanceler brasileiro Celso Amorim, pois seus soldados vistoriaram, em La Paz, o avião em que iria viajar o chanceler, pensando que nele estivesse o senador boliviano Roger Molina.
Da mesma forma, a Inglaterra desrespeita o direito de asilo concedido pelo Equador ao ativista de Wikileaks, Julian Assange, não concedendo salvo-conduto para que possa ir ao aeroporto e viajar para Quito. Atitude também imitada pela Bolívia, que não concedia salvo-conduto ao senador Molina, para deixar o asilo diplomático, concedido pela presidenta Dilma, e torná-lo territorial, indo viver no Brasil.
Faz parte da concessão do asilo não se levar em conta o passado do perseguido. Foi o caso de Ronald Biggs, assaltante do trem pagador de Londres, perseguido pela Inglaterra mas que recebeu oficialmente o asilo concedido pelo Brasil. O presidente hondurenho, derrubado por um golpe, se asilou na embaixada do Brasil, onde tinha condições melhores que o senador boliviano, talvez em decorrência do seu cargo de presidente deposto.
O Brasil tem uma tradição, se assim se pode dizer, de conceder asilo a personalidades de direita – assim recebeu Alfredo Strossner, ditador do Paraguai; deu asilo a Marcelo Caetano, derrubado pela Revolução dos Cravos que acabou com o salazarismo em Portugal; e deu asilo ao político francês Georges Bidault, contrário à independência da Argélia e ao general De Gaulle. A concessão do asilo ao boliviano Roger Molina, embora pareça inexplicável pela presidenta Dilma, provavelmente por questões humanitárias, confirma essa regra.
Já com Cesare Battisti não se tratou de asilo, pois o italiano estava no Brasil clandestinamente e foi preso a pedido da França e depois da Itália. O processo, que se prolongou por mais de quatro anos, discutia se devia ou não ser extraditado e foi resolvido pelo ex-presidente Lula, no seu último dia de governo, negando-se a extradição e concedendo-lhe o direito de viver no Brasil.
Portanto, com os elementos acima, fica mais fácil agora para o leitor decidir se o ministro-conselheiro Eduardo Sabóia, diplomata brasileiro em La Paz, agiu corretamente ou não. Se a Bolívia agiu corretamente ao negar conceder salvo-conduto ao senador boliviano, que recebera asilo da presidenta Dilma, e ao humilhar o chanceler Celso Amorim, ao vistoriar seu avião.
Quanto a funcionários de departamentos de Polícia e de embaixadas que ajudaram pessoas a fugir, existem casos na própria Suíça, onde o chefe de Polícia, Paul Grunnigen, concedia vistos de entrada aos judeus, desobedecendo ordens do governo e, por isso, perdeu seu emprego e morreu na miséria; em Portugal, o consul-geral Aristides de Sousa Mendes desrespeitou ordens expressas do ditador Salazar, concedendo, na cidade francesa de Bordeaux, vistos para 30 mil judeus fugirem para os EUA.
E a própria esposa do diplomata e escritor Guimarães Rosa, Aracy Guimarães Rosa, que trabalhava na chancelaria do Consulado do Brasil, em Hamburgo, concedia vistos para judeus escaparem dos nazistas.
(Publicado originalmente no site Direto da Redação)
Rui Martins, jornalista, escritor, líder emigrante, correspondente em Genebra.
Fonte: Correio do Brasil, 31/08/13