Da revista
Brasileiros:
“Os procuradores da Lava Jato estão descontrolados”
Convicto
de que a força-tarefa extrapola todos os limites e atua em parceria com
o juiz Sergio Moro, o que é inconstitucional, o subprocurador-geral da
República Eugênio Aragão afirma que seus colegas de Curitiba criam um
“quadro de absurdos” ao sacrificar a realidade
Subprocurador-geral
da República, professor de Processo Penal da Universidade de Brasília e
ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eugênio Aragão
defende que, diante de um fato complexo, é legítimo investigar a partir
de um modelo teórico. Por princípio, esse modelo deve ser flexível, para
ser alterado à medida que as provas se acumulam e as investigações
avançam para um ou outro lado. Pela análise de Aragão, é justamente
nesse ponto que começam os problemas da Operação Lava Jato: “Os
integrantes da força-tarefa, até por uma questão de vaidade, insistem no
modelo original. E ficam socando a prova obtida dentro das categorias
que criaram”.
Em alguns casos, afirma, a acusação formulada
pelos procuradores da República instalados em Curitiba parece mais “uma
questão de fé do que prova”. Foi o que aconteceu quando os procuradores
Deltan Dallagnol e Henrique Possobon apresentaram denúncia contra o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criticada até pelos mais
ferrenhos aliados da Lava Jato, mas aceita seis dias depois pelo juiz
Sergio Moro: “Trata-se de um jogo combinado, inconstitucional. Lá em
Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em
conjunto”. Aragão comenta ainda que foi o próprio Dallagnol, coordenador
da força-tarefa, que admitiu em entrevista o trabalho conjunto: “Os
dois são amigos, dão aulas na mesma instituição de ensino, agem como se
fossem um só”.
Avesso à ideia de assistir impassivelmente à
atuação que considera nociva à democracia, Aragão escreveu uma carta
aberta ao procurador-geral da República assim que ele, Rodrigo Janot,
fez um discurso considerando “desonesto” qualquer tipo de crítica feita à
Lava Jato. Na carta, Aragão lembra inclusive comentário feito por Janot
em encontro entre os dois, no qual o procurador-geral disse que a Lava
Jato era “muito maior” do que ambos. Naquele momento, Aragão tinha
externado seu temor quanto ao impacto provocado pela Lava Jato na
economia do País, também tema de sua entrevista à Brasileiros: “Eles se
gabam de ter devolvido à Petrobras US$ 2 bilhões, mas não veem o estrago
que causaram na economia, que é muito superior. Por baixo, US$ 100
bilhões, se a gente pensar nos empregos que foram perdidos e nas
indústrias, com seus artigos tecnológicos desmantelados”.
Brasileiros
– O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tornou réu após uma
denúncia criticada até por seus mais ferrenhos adversários. O
ex-ministro Guido Mantega foi preso num hospital. Como o senhor recebeu
essas decisões?
Eugênio Aragão – É um jogo
combinado, inconstitucional, entre o juiz Sergio Moro e os procuradores.
Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em
conjunto. No caso de Guido Mantega, o juiz admitiu, indiretamente, que
não havia motivo para a prisão, ao mandar soltá-lo cinco horas depois. E
prisão é um ato extremamente grave, que estigmatiza a pessoa. O
Ministério Público só pode pedir a prisão a um juiz se houver indícios
veementes da autoria de um crime e se a pessoa for de extrema
periculosidade.
No episódio do ex-presidente, sobraram críticas à apresentação dos procuradores. Como a denúncia prosperou?
Trata-se
de um grupo de pessoas que estão agindo sem nenhum controle e sem
nenhuma accountability. Estão correndo soltas, completamente
descontroladas. Quando as pessoas se colocam em cima de um pedestal, se
achando os salvadores do mundo, não aceitam sugestões nem conselhos. No
episódio de Lula, apresentaram um Power Point chulé, com uma série de
ilações. A apresentação foi de tal generalidade que eles poderiam
colocar qualquer um de nós lá dentro. Outro erro recorrente do
Ministério Público é sacrificar a realidade para manter os seus castelos
teóricos.
Como?
Quando tem um fato
complexo, o Ministério Público trabalha com um modelo. É legítimo, desde
que o modelo seja uma referência preliminar. À medida que a
investigação avança, esse modelo tem de ter flexibilidade para ser
alterado, conforme as novas constatações. Só que os integrantes da
força-tarefa, até por uma questão de vaidade, insistem no modelo
original. E ficam socando a prova obtida dentro das categorias que
criaram. O que sai dali é um quadro de Salvador Dali. Um quadro de
absurdos. Nada daquilo que foi apresentado em Curitiba é minimamente
plausível. Parece muito mais uma questão de fé do que prova.
Qual a origem dessa postura?
A
escola, essa ideia de se criar um modelo de atuação, começou com o
mensalão. O problema é que o processo vai avançando e o modelo ficando
superado. E o Ministério Público insiste em manter o castelo teórico. As
teorias científicas têm de ter flexibilidade. Paul Feyerabend (filósofo
austríaco) diz que os cientistas são todos desonestos porque são
extremamente vaidosos. Quando acham um problema na teoria, eles botam a
sujeira debaixo do tapete e fazem um puxadinho para que a teoria deles
continue valendo. Então, as teorias não vão sendo automaticamente
refeitas quando falseadas, mas submetidas a uma cosmética. E me parece
que esses colegas estão agindo muito nessa linha feyerabendiana.
Dentro do Ministério Público, não existe uma forma de controlar situações desse tipo?
Para
mim, essa coisa de força-tarefa é para FBI, para Miami Vice (série
americana de tevê). Não tem tradição no Brasil. A primeira que houve foi
durante a gestão do procurador da República Claudio Fonteles, para
tratar do caso Banestado, que também, por sinal, tinha como
juiz-coordenador o Sergio Moro.
E alguns dos procuradores da força-tarefa.
Também.
Não foi uma boa experiência. Tanto não foi que quando Antonio Fernando
de Souza (o sucessor de Fonteles) assumiu, a primeira coisa que fez foi
acabar com a força-tarefa. O procurador-geral seguinte, Roberto Gurgel,
também nunca aceitou força-tarefa. Por duas razões. A primeira é de
política processual. Quem cria uma força-tarefa tem obrigação de
apresentar um resultado estrambólico. Forças-tarefas não são criadas
para arquivar processos. Há pressão para resultados, para uma
condenação. Já existe um pré-julgamento.
E a segunda razão?
É
o processo penal brasileiro, que tem características distintas de
outros países. No processo penal brasileiro, o Ministério Público, a
polícia e o Judiciário são atores extremamente empoderados. Muito mais
do que em qualquer outro modelo no Direito Comparado. No Brasil você tem
uma polícia que é tão forte que derruba ministro da Justiça. Vários
ministros da Justiça tiveram que deixar o cargo porque brigaram com o
diretor-geral da Polícia Federal.
Por exemplo?
Paulo
Brossard. Quando Paulo Brossard começou a se desentender com Romeu Tuma
(diretor da Polícia Federal entre 1985 e 1992), o que aconteceu? Sarney
(o então presidente José Sarney) teve que colocá-lo no Supremo Tribunal
Federal.
Foi preciso tirar do ministério?
Sim,
porque não podia tirar o Romeu Tuma. Ou seja, o diretor-geral é mais
forte do que o ministro de Estado. O Ministério Público, por sua vez, é
um império. Ninguém toca nele. O Judiciário não fica atrás. Tem hoje um
poder tão grande que manda até projeto de lei para o Congresso, para
fixar seus vencimentos. Quando se tem três atores tão empoderados, é
preciso um sistema de freios e contrapesos para controlá-los, o que eu
chamo de filtros processuais. A polícia faz a investigação e qualquer
tipo de reclamação de abusos da polícia é dirigido ao Ministério
Público, que pode corrigi-los. Se o Ministério Público estiver fazendo
algum tipo de abuso, o recurso é o juiz, que também corrige. E, se o
juiz estiver fazendo alguma coisa errada, recorre-se à segunda
instância. Então, existe um controle de cada um desses agentes, um pelo
outro.
Isso na teoria.
Numa força-tarefa,
onde existe uma verdadeira mescla, uma mancomunagem desses três atores e
eles trabalhando de mãozinhas dadas, a quem é que o jurisdicionado vai
recorrer?
A defesa fica inviabilizada?
Não
só a defesa. Inviabiliza qualquer tipo de controle, qualquer tipo de
prestação de contas ao público. Imagine, por exemplo, se alguém quiser
reclamar contra a Lava Jato. Para quem vai reclamar? Até o Tribunal
Regional da 4ª Região (a segunda instância) com muita dificuldade
contraria os desígnios da Lava Jato.
O próprio ministro Teori Zavascki foi criticado pelo juiz Sergio Moro em artigo de jornal.
Eles perderam completamente a noção de limite. Não tem ninguém que controle isso.
Se perderam a noção, por que as instâncias superiores aceitam?
Isso
é uma técnica, a articulação da jurisdição com a mídia. No momento em
que o juiz Sergio Moro encontra apoio quase unânime da mídia, os outros
juízes ficam com dificuldade de justificar publicamente algum tipo de
censura. A maioria fica desconfortável, até porque no Judiciário existe
uma cultura de um juiz não falar mal de outro.
Deixam de tomar uma atitude mesmo diante de medidas contrárias à lei?
A
cultura do Judiciário é de autocomedimento, de autorrestrição. Quando
um juiz vira o mascote da imprensa, gera uma perplexidade, uma
insegurança por parte de muitos atores do Judiciário. E isso se reflete
no processo de decisão, porque a pressão da opinião pública é enorme.
Não é à toa que nos Estados Unidos qualquer prova que venha a público
antes de ser submetida ao Grande Júri é nula. O Grande Júri não pode ser
submetido à pressão da opinião pública. O juiz é humano como nós.
Alguns são mais fortes, outros mais fracos.
Quem faz crítica corre o risco de ser confundido com quem não quer combater a corrupção?
Tem
um pouco disso, mas as pessoas que pensam sabem que esse discurso hoje
está desgastado. Quando a corrupção é sistêmica, não se combate apenas
com Direito Penal. Não estou dizendo que o Direito Penal deva cruzar os
braços e ver as pessoas surrupiarem os bens públicos. Não se trata
disso, mas de dar mais ênfase a políticas estruturantes da
administração. Para isso, é preciso entender um mínimo de economia da
administração pública, o que o Ministério Público não entende. Quando é
posto na frente de um problema, o Ministério Público quer um culpado, um
bode expiatório. Não quer resolver o problema. E vem com um discurso
moralista.
Como criar a impressão de que a corrupção no Brasil começou há poucos anos?
A
corrupção sistêmica existe há séculos no Brasil. O problema é eles
acharem que podem resolver essa corrupção sistêmica dando murro em cima
da mesa. E na base de cassetete, colocando todo mundo dentro da cadeia.
Não vai ter cadeia para tanto corrupto no Brasil. Eles vivem sob a
ilusão de que o Direito Penal tem capacidade de resolver isso. O Direito
Penal foi feito para a corrupção eventual. O sujeito, digamos, que
tenta tirar proveito de um guarda de trânsito. Diante de todo um sistema
de concorrência pública, de cartelização de empresas que funcionam na
base de remunerações paralelas para atores políticos, é preciso rever
não só a dinâmica política do País, para que os atores políticos não
sejam mais clientela desse dinheiro desviado, como também criar defesas
dentro da administração, para que ela não fique sujeita à extorsão por
parte de agentes privados.
Mecanismos de transparência ajudariam?
É
um aspecto. Um Estado como o nosso, em que os processos administrativos
são extremamente atravancados, é natural que a peita (o suborno)
funcione como uma forma de liberar o processo de decisão. Se eu quiser
construir um frigorífico, construo em dois meses, mas para botar esse
frigorífico para funcionar vou precisar de oito anos para conseguir as
licenças. A administração cria dificuldades para vender facilidades.
Teria então que começar diminuindo a burocracia?
Digamos
assim. Se um estrangeiro está querendo investir meio bilhão de dólares
no Brasil, não vou tratá-lo como o Zé das Couves que está querendo abrir
uma banquinha de legumes na esquina. Da mesma forma que os grandes
bancos têm gerentes pessoais para os correntistas de contas mais
graúdas, deveria ser criado um balcão especial para esse tipo de
investidor. Ele não tem de correr atrás dos fiscais, das licenças, de
entrar na cozinha do governo. Ele tem que ficar na sala de visitas. Um
gerente geral de investimentos vai dizer o que ele precisa entregar em
termos de papelada, o que deve pagar de taxas. E esse gerente-geral é
quem deveria correr atrás dos órgãos da administração para eles tomarem a
decisão o mais rápido possível sobre as licenças. Precisamos de boas
práticas na administração para lidar com o setor privado.
E
nesse momento, em que há uma série de episódios de corrupção comprovada
na Petrobras, o que a Justiça deveria fazer com os corruptores?
Em
primeiro lugar, para mim, essa prova tirada pela Lava Jato é altamente
suspeita. Eu não sei se tem essa prova toda. Existem informações. Como o
Ministério Público é escandaloso, mas não é nem um pouco transparente,
não sabemos ao certo o que aconteceu, o que não aconteceu. O fato é que
não podemos matar a iniciativa privada, por causa de más práticas na
relação com o governo. A gente não mata barata botando fogo na casa.
A Lava Jato afeta a economia?
Não tenha dúvida. Eles se gabam de ter devolvido à Petrobras
US$
2 bilhões, mas não veem o estrago que causaram na economia, que é muito
superior. Por baixo, US$ 100 bilhões, se a gente pensar nos empregos
que foram perdidos e nas indústrias, com seus artigos tecnológicos
desmantelados. A indústria naval está indo para a estaca zero de novo.
Já passamos por isso uma vez, na década de 1980, quando ela quebrou.
Conseguimos reconstruir a indústria naval e estamos quebrando-a de novo.
E a indústria petroleira?
São ativos que
vão demorar décadas para serem reconstituídos. Outro setor essencial, a
indústria da construção civil, ficou fortissimamente abalado. Esses
gigantes da construção civil são os responsáveis por construir a nossa
infraestrutura. Não adianta pensar como economista liberal, no sentido
de que haverá novas ofertas no dia em que esses gigantes quebrarem. Não é
simples assim. Para entrar no Brasil e substituir uma Camargo Corrêa ou
uma Norberto Odebrecht, as empresas estrangeiras vão querer saber qual é
a segurança jurídica para fazer contrato com o governo. E quais são os
custos logísticos, já que não têm canteiros de obras no Brasil. Até
essas empresas estabelecerem a sua logística, os projetos vão custar
mais caros. E tem algumas obras que essas empresas não sabem fazer, que
só as nacionais sabem.
Como por exemplo?
Uma
estrada na Amazônia, em terreno pantanoso, atravessando um rio atrás do
outro. Quem tem tecnologia para isso são as nossas empresas. Se elas
quebrarem, por um período de cinco a dez anos as obras de infraestrutura
vão ficar comprometidas.Vamos perder o bonde da vez na economia global.
Não podemos, por conta de uma luta moralista, afundar o País. O que vai
sobrar? Empresas quebradas? Políticos de ocasião, os Berlusconis
brasileiros?
Como punir, sem quebrar, uma empresa envolvida em corrupção?
Nós
temos dois modelos possíveis. Converter as multas que forem aplicadas
em um programa social, em projetos que o governo deveria fazer, mas tem
poucos recursos, como na área educacional. Ao mesmo tempo, a empresa
seria obrigada a mudar suas práticas, no sentido de criar um código de
compliance e garantir que essas normas vigorem.
E a outra alternativa?
Se
as multas forem de tal porte que prejudiquem a própria estrutura da
companhia, a outra possibilidade seria negociar o valor, transferindo
parte do controle da empresa para a União. A União poderia capitalizar a
empresa e revender as ações capitalizadas no mercado, para ressarcir o
prejuízo. A empresa muda de mão, mas sobrevive, até porque os
administradores continuam os mesmos, para que seu know how permaneça.
E o administrador que foi responsável pelo ato de corrupção?
Esse
deve ser punido, mas é uma questão pessoal. Deve-se distinguir o que
acontece com a empresa e o que acontece com o indivíduo achado com a mão
na cumbuca. Hoje no Brasil as empresas sofrem consequências horrorosas,
como a proibição de contratar com a União. Impedidas de contratar com a
Fazenda Pública, que constrói infraestrutura, elas vão para o buraco. É
como jogar fora o neném junto com a água suja do banho.
E as medidas contra a corrupção que os procuradores da República mandaram para o Congresso?
São
fruto de um populismo judicial-legislativo. Para começar, elas não têm
nada de iniciativa popular. Foram gestadas no grupo da Lava Jato.
Fizeram um pacotinho e venderam para a sociedade como se fosse a solução
contra a corrupção. O Ministério Público já faz esse tipo de marketing
há algum tempo.
Desde quando?
Desde 2013,
quando a polícia apresentou na Câmara dos Deputados uma Proposta de
Emenda Constitucional, a PEC 37, criando uma exclusividade para a
polícia investigar em matéria criminal. O Ministério Público tomou
aquilo como um risco a seu interesse corporativo. Naquela época,
pululavam manifestações por todo território nacional. E o Ministério
Público conseguiu inocular nessas manifestações o protesto contra a PEC
37, vendendo a ideia de que gente desonesta estava querendo impedi-lo de
fazer a coisa certa. A maioria das pessoas nem sabia do que tratava a
PEC 37, mas o que mais se viu nas manifestações foram cartazes dizendo
“Abaixo a PEC 37”. Ou seja, o Ministério Público usou o movimento rueiro
de 2013 para inocular uma agenda que era tipicamente corporativa.
Todo o Ministério Público?
É
uma maioria do Ministério Público que pensa assim. Pensa que temos,
realmente, que apoiar as Dez Medidas contra a Corrupção e considera o
que está sendo feito em Curitiba como um modelo de ação. Poucos já viram
que é um tiro no pé. Eu sou um deles, talvez o que mais fala, mas no
País inteiro nós talvez tenhamos uns 200 que pensam desse jeito. Isso
entre cerca de 20 mil agentes, se considerarmos o Ministério Público
estadual, do trabalho, militar e o federal.
Qual é o papel do procurador-geral, Rodrigo Janot, nesse contexto?
Na
posse da ministra Cármem Lúcia como presidente do Supremo, ele fez uma
defesa agressiva da atuação da Lava Jato, dizendo ser desonesto qualquer
tipo de crítica feita à operação. E ele prorrogou a Lava Jato por mais
um ano, apesar de todas essas distorções. Ou seja, ele é parte desse
problema. Não é a solução.
Por isso o senhor escreveu uma carta aberta para ele?
Eu
tinha que fazer isso. Aprendi a fazer denúncia de modo absolutamente
frio. Tem que dizer que no dia tal, fulano de tal, com a intenção tal,
fez tal coisa e com isso prejudicou beltrano de tal. Não vou chamá-lo de
meliante, de vagabundo. Uma denúncia não é um drama. Agora, uma
denúncia de 147 páginas, como a que tinha sido feita contra o
ex-presidente Lula, significa muita coisa mal explicada. Aliás, doutor
Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da República entre 1989 e
1995) costumava dizer que denúncia com mais de 20 páginas era inepta.
Ou seja, se há um fato claro para incriminar alguém, pode-se fazê-lo com
poucas palavras.
Na carta aberta ao procurador-geral, o
senhor citou o livro das Ordenações Filipinas para criticar a exibição
de investigados e réus como se fossem troféus. Qual é a dimensão desse
retrocesso?
Do ponto de vista do Direito Penal
pós-iluminismo, isso é um retrocesso até a práticas medievais, porque
Foucault (o filósofo francês Michel Foucault), um estudioso da
criminologia moderna, distingue o Direito Penal moderno do
pré-iluminista. No pré-iluminismo, o alvo era o corpo do inculpado. O
Estado se apoderava do corpo. Flagelava, esquartejava, matava o
inculpado na fogueira. O Direito Penal moderno, em vez de se apoderar do
corpo do inculpado, se apodera do tempo. Ele bota o sujeito na cadeia.
Ele não gosta de exibir o indivíduo porque é ciente das suas limitações
do Direito Penal. Os operadores do Direito sabem que podem ser
responsabilizados por isso. Nos Estados Unidos, não se pode nem
fotografar um julgamento. Tamanha é a timidez do processo penal que lá
tem pintor para retratar o julgamento. No Brasil, estamos voltando à
época em que o Estado se apoderava da pessoa e a exibia, usava como
troféu.
A Lava Jato faz mal para a democracia?
A
meu ver faz. Faz mal quando os poderes não se autocontêm, quando são
exercidos sem limite. E muito mais ainda quando eles têm alvos que são
não muito claramente explicados para a população, em termos de
seletividade. São ruins também para a democracia quando operações desse
tipo servem para emprestar musculação para demandas corporativas.
Pela postura crítica, o senhor não é hostilizado por seus pares?
Na
cara não. Mas na rede corporativa, onde todos conversam dentro da
instituição, sou persona non grata já há muito tempo. Não me preocupa,
porque eu devo lealdade não a uma corporação e sim ao serviço público,
ao Brasil e sobretudo ao contribuinte que me paga. Minha crítica não é a
colegas. Os colegas, em sua grande maioria, são pessoas discretas, que
fazem o seu trabalho. São profissionais de boa-fé. A Lava Jato, como
forma de atuar, não é regra geral do Ministério Público.
Qual a preocupação?
Estou
olhando reflexivamente, como jurisdicionado. E se fosse eu que
estivesse exposto ao superpoder deles? A quem eu iria recorrer? Como
cidadão e como professor de Processo Penal, que também sou, na
Universidade de Brasília, tenho que estar preocupado com isso. Os
brasileiros têm que estar preocupados com o estrago na economia. Como
eleitor, tenho que estar preocupado com a influência desse processo
sobre o sistema político. O Ministério Público tem como função muito
nobre, que é o artigo 127 da Constituição, ser o defensor da democracia.
E, agindo dessa forma, não me parece que está desempenhando o papel de
defensor da democracia.