Viomundo, 15/05/2017
O choque de realidade que Sérgio Moro tomou em Londres
No sábado, 13 de maio, o juiz Sérgio Moro foi a Londres participar de uma mesa redonda que tinha o ex-ministro da justiça José Eduardo Cardozo entre seus conferencistas. Como esperado, Cardozo teceu incisivas críticas à postura de Moro no que diz respeito, dentre outras coisas, à flexibilização que vem fazendo em relação a garantias como a presunção de inocência e o caráter excepcional das prisões preventivas.
No início de sua fala, logo após as exposições de Cardozo, o juiz paranaense brincou com a expectativa de um confronto entre ele e o ex-ministro, tendo garantido que não havia lhe desferido nenhuma cotovelada durante sua palestra.
Moro reiterou o que vem dizendo ao longo dos três anos da operação Lava Jato.
Criticou o que chama de “generosidade recursal”, algo que favoreceria a impunidade, e qualificou a presunção de inocência como um dos trampolins para que réus acabem impunes.
Citou também as experiências dos EUA e da França, países de tradição democrática e liberal mais consolidada que o Brasil que deixaram de adotar a regra da prisão apenas após o trânsito em julgado.
Obviamente, teceu loas ao sepultamento que o STF promoveu do artigo 5º, LVII da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
O STF, segundo afirmou, havia fechado uma das janelas para a impunidade.
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que aqueles que têm o controle dos meios de produção material controlam também os meios de produção espiritual.
Em outras palavras, todas as representações e valores inerentes ao pacote ideológico das classes dominantes são expandidos tal qual se tratassem de uma realidade universal, de modo que o pensamento burguês quebra as barreiras de sua classe e coloniza a mente de quem vive de salário e usa transporte público.
A metáfora marxista é importante para compreendermos o microuniverso de Moro, aquele, da 13ª vara federal de Curitiba.
A fala do magistrado indica que a (sua) realidade da impunidade é a realidade dos processos que se revezam no seu gabinete e no gabinete de seus colegas em autos que tratam de crimes financeiros, lavagens de dinheiro, corrupção ativa e passiva, evasão de divisas, etc, onde pessoas abastadas é que são rés.
Entretanto, como falar que há impunidade em um país no qual sua população carcerária é a quarta maior do planeta, sendo composta por 60% de presos provisórios, pessoas que ainda estão aguardando o julgamento?
Como falar em uma democracia substancial, efetiva e fora do formalismo burguês quando mais da metade desta população é de pessoas negras, maiores vítimas da escalada da violência?
Moro projeta no mundo a realidade ar-condicionada de seu gabinete, onde boa parte dos réus usam gravata e possuem off-shores e contas na Suíça.
Não surpreende, portanto, que se coloque como uma espécie de aplicador mecânico da lei ao afirmar, no que se refere às prisões preventivas, que as vem aplicando de maneira “ortodoxa”, estritamente dentro das hipóteses legais, ainda que o instituto “prisão preventiva para forçar delações” ainda não esteja previsto em nosso ordenamento jurídico.
Moro mostrou-se convencido de que vem agindo de forma técnica, cinzenta, operacional e objetiva, e que as consequências de seu anti-garantismo se restringem aos processos no qual preside e à sua cruzada contra a corrupção.
Alguém precisava trazê-lo para a realidade.
Foi a Djamila Ribeiro, filósofa e ex-Secretária-Adjunta de Direitos Humanos do município de São Paulo, que coube este papel.
Aos chiliques da turba pró-Moro, foi ao microfone e criticou a “aplicação ortodoxa da lei” defendida pelo juiz, recordando que a escravidão no Brasil era prevista em lei e que esta “ortodoxia”, principalmente em matéria penal, é responsável por gerar efeitos diretos nos abusos institucionais e no encarceramento em massa da população negra do país, alvo preferencial de nosso sistema repressivo.
Lembrou do caso de Rafael Braga Vieira e chamou a atenção para a generalização da arbitrariedade representada pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela ordem judicial que cessou as atividades do Instituto Lula.
Moro, cuja relação com a lei lembra a de monarcas absolutistas, estava nu.
O momento foi emblemático, pois escancarou a necessidade de trazer o juiz ao chão para que refletisse acerca das consequências de suas decisões, dando-lhe um choque de realidade e mostrando que o mundo vai muito além da bolha asséptica da 13ª vara.
Se hoje ele se vê como um preceptor da flexibilização da presunção de inocência e da prisão preventiva quanto a crimes envolvendo grandes interesses econômicos, há apenas um filete mínimo, insignificante que separa uma legitimação ainda maior dessa narrativa em relação à absoluta maioria dos casos onde o réu não é Marcelo Odebrecht, mas sim Rafael Braga Vieira, Amarildo ou a população negra, pobre e moradora de áreas periféricas, os esfarrapados das cracolândias e os descalços e mendicantes invisibilizados por sua condição social, as mesmas pessoas que já esborrotavam nosso sistema prisional antes mesmo de Moro dar guarida a essa tendência autoritária.
É por razões como estas que causa espanto que o magistrado, em sua fala, tenha se amparado na realidade das demais varas criminais mesmo diante da profusão de dados que comprometem a substância do seu discurso anti-iluminista enquanto pressuposto para o combate à corrupção, cujo enfrentamento, como bem observou Cardozo, jamais pode ocorrer sob os cadáveres de conquistas civilizatórias e garantias constitucionais.
O mundo real foi colocado sob o nariz de Moro, gerando o incontido descontentamento do seu fã clube, cuja existência, por sua vez, foi também questionada por Djamila como evidência de um judiciário partidarizado: é bom para a democracia que um juiz tenha um séquito de adoradores fanáticos?
É possível o diálogo numa conjuntura onde arbitrariedades se assomam de forma assustadora? Certamente não.
Ao ter suas contradições expostas, foi rompido o véu das bajulações que lhe confere a mídia comercial e lhe dada a oportunidade de refletir sobre seus atos enquanto juiz e agente político.
Se terá maturidade e espírito republicano para fazê-lo, é outra história.
*Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor.
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