Reportagem
Carlos MadeiroColunista do UOL/08/05/2024 04h00/Atualizada em 08/05/2024 07h40, 00:14 / 00:15
"A PM estava impedindo resgates no domingo." "O Exército está impedindo que as pessoas ajudem." "Estavam na ponte, acionei o quartel três dias e não fizeram nada."
Comentários como esses foram retirados das redes sociais e fazem parte de uma onda de discursos negacionistas na internet nos últimos dias, que alegam que o poder público não está atuando nos resgates de vítimas das chuvas no Rio Grande do Sul e que até atrapalha quem tenta ajudar.
Apesar de a ajuda de voluntários anônimos no salvamento e com doações ser importante, diante do tamanho sem precedentes da tragédia, as forças estatais de todas as esferas, municipal, estadual e federal, têm atuado para salvar vidas.
Segundo balanço desta terça-feira (7) à noite, somente os trabalhos conjunto de Forças Armadas, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, Brigada Militar, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e voluntários resgataram 50 mil pessoas no estado, onde 401 municípios sofrem as consequências das chuvas.
As forças de segurança estaduais, incluindo Brigada Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros, mobilizaram mais de 2.000 servidores, atuando tanto na linha de frente quanto na retaguarda dos salvamentos nas regiões mais afetadas. E o governo federal tem cerca de 14,5 mil pessoas ajudando no estado, sendo 13,6 mil militares.
Seja por vídeos circulando no WhatsApp, comentários em redes sociais ou postagens, internautas têm "denunciado" em massa.
O principal painel desses comentários são as páginas de órgãos oficiais, em especial do Exército, onde há milhares de pessoas repetindo que "o povo está se salvando" e que a ajuda dada "foi de empresários, não do governo".
Nem mesmo imagens reais de resgates convencem internautas, que alegam incorretamente que os vídeos são falsos.
O que está por trás disso?
Para especialistas consultados pelo UOL, por trás desses comentários há uma máquina de fake news organizada e bem articulada na distribuição de desinformação.
A professora de jornalismo da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e pesquisadora sobre desinformação no Analisa (Laboratório de Análise Discursiva de Fake News), Mércia Pimentel, acredita que esse novo negacionismo, que diz ver a falta de ação no Rio Grande do Sul, segue um princípio similar ao negacionismo climático, ao terraplanismo ou ao movimento antivacinação.
"Esses comentários aparentemente inofensivos são carregados de sentidos ideológicos, que reproduzem interesses de grupos de poder", diz
"Quando se diz que 'é o povo quem está se salvando', ao mesmo tempo em que se nega a ação do Estado, reproduz-se uma memória discursiva de que a solução está na iniciativa privada. Veladamente, discursos negacionistas têm como base teorias revisionistas e conspiratórias, bem como interesses políticos e/ou econômicos."
(Mércia Pimentel)
A pedido da coluna, ela analisou alguns conteúdos postados e apontou que há uma disseminação, em especial, de vídeos isolados de pessoas que foram salvas por forças não estatais. Com base em um exemplo, nasce a generalização, que vira uma fake news.
Nesse caso, são muitos vídeos com narrativa "rica em detalhes", diz a pesquisadora. "O sujeito se enquadra como porta-voz dos acontecimentos e esmiúça situações forjadas para envolver o público no que é dito."
"É o famoso 'eu estava lá e vi com meus próprios olhos!', o que faz as pessoas crerem que se trata do real. Pode haver uma base factual no que é dito, mas a narrativa resulta de manipulação." (Mércia Pimentel)
Para ela, parte do espalhamento dessa narrativa vem por meio de blogs e páginas de conteúdo opinativo financiados pela direta ou indiretamente por grupos interessados naquelas fake news, ou por meio de ferramentas de monetização de páginas como YouTube.
Para ela, parte do espalhamento dessa narrativa vem por meio de blogs e páginas de conteúdo opinativo financiados pela direta ou indiretamente por grupos interessados naquelas fake news, ou por meio de ferramentas de monetização de páginas como YouTube.
Veículo militar transporta desabrigados próximo ao aeroporto de Porto Alegre
Imagem: Reuters
Dois grupos comandam impulsionamento, diz professor
O professor da UFABC (Universidade Federal do ABC), pesquisador de redes digitais e sociólogo Sergio Amadeu afirma que esse tipo de desinformação parte de dois principais grupos: "os de extrema direita e os criminosos". Amadeu fez parte do primeiro governo Lula, quando presidiu o ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação), ligado à Casa Civil.
"Já há algum tempo, os grupos de extrema direita possuem líderes que atuam sempre que possível para desmoralizar cientistas, a imprensa e forças políticas democráticas. O padrão é inventar situações que confirmem sua doutrina".
Sergio Amadeu
Além do interesse político, ele cita que há "criminosos que desinformam para fraudar a solidariedade e desviar recursos das pessoas que queriam ajudar a população do Sul."
No caso da extrema direita, uma das estratégias, não só no Brasil, é tentar reduzir a importância de ações governamentais para inflar uma revolta e, assim, ampliar apoio de grupos opositores, afirma.
"Eles mentem e dizem que o helicóptero é de um empresário, e não de órgãos federais, por exemplo. Para isso, inventam situações, desvirtuam fatos, descontextualizam imagens. A ideia sempre será criar algo que confirme suas crenças reacionárias."
(Sergio Amadeu)
Militares e voluntários resgatam animais domésticos na enchente em Porto Alegre. @exercitooficial
Com a popularização da internet, esse conteúdo negacionista tem formas de encaminhamento rápido pelas redes sociais ou aplicativos de mensagem e acaba se generalizando em muitos grupos, criando uma desinformação coletiva.
É uma rede de desinformação distribuída que combina engajamento voluntário e assessores de políticos e empresários de extrema direita para inundar as redes e manter viva a sua crença. A estratégia é engajar cada vez mais, principalmente em um ano eleitoral
Sergio Amadeu
AGU e MJ vão agir
Em nota, o governo federal informou que a disseminação de fake news foi o primeiro assunto abordado ontem à tarde em reunião da Sala de Situação montada pelo governo federal, em Brasília.
"O comandante militar do Sul, General Hertz Pires do Nascimento, trouxe um relato sobre o impacto da propagação de notícias falsas nas operações de salvamento."
Nota do governo federal
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que a AGU (Advocacia Geral da União) e o Ministério da Justiça adotarão, em caráter de urgência, medidas para impedir que a disseminação de informação falsa comprometa o trabalho de salvar vidas.
"A AGU, em apoio à Secom, está atuando para identificar esses atores do ecossistema desinformacional. Vamos apresentar ações judiciais com um pedido de retirada de conteúdo, direito de resposta e indenização por dano moral e coletivo."
(Jorge Messias, advogado-geral da União)