Muito além da discussão sobre as hidrelétricas, o Tapajós vive problemas relativos ao garimpo – clandestino ou oficial – e a expansão do agronegócio
Por Carlos Juliano Barros
Garimpos
Corredor do agronegócio
Ivo Lubrinna não se conforma com o fato de seu candidato à reeleição para a prefeitura de Itaituba, “mesmo com a máquina na mão”, ter perdido o pleito realizado em outubro passado. Dono de uma voz grave e de uma franqueza espantosa, ele sabe que os próximos anos serão bastante movimentados no município de 100 mil habitantes que cresceu às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará.
Enquanto concede a entrevista, Lubrinna é vigiado silenciosamente pelo filho, que acaba de voltar à Amazônia depois de nove anos na capital da Inglaterra, onde comandava uma prestadora de serviços de limpeza. Como a crise europeia não dá sinais de trégua, ele acha que é possível ganhar até três vezes mais investindo em Itaituba.
Até o apagar das luzes de 2012, Lubrinna estará à frente da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Produção. Porém, mesmo antes de integrar a linha de frente do Executivo local, ele já era uma verdadeira lenda, um dos garimpeiros mais conhecidos no Tapajós por conta dos mais de 40 anos de ofício. Não à toa, Lubrinna é o presidente – “licenciado”, como ele faz questão de ressalvar – da Associação dos Mineradores de Ouro do Tapajós (AMOT), entidade que representa menos de 10% dos 50 mil garimpeiros da região.
Enquanto se afasta da carreira de homem público, Lubrinna já se prepara para encarar a missão de homem de negócios, agora com a ajuda do filho. Após concluir recentemente o licenciamento ambiental do único garimpo que afirma possuir, e que segundo ele encontrava-se parado por falta de regularização, vai retomar a procura do ouro.
“Eu fui irresponsável até o dia em que assumi o cargo na prefeitura. Era um contrassenso: como é que o secretário de Meio Ambiente, com um garimpo irregular, iria discutir com alguém?”, questiona. Agora, ele já não corre atrás apenas do valioso metal. Cogita também investir em terrenos para a instalação de empresas de logística e de maquinaria pesada que, num horizonte bastante próximo, devem chegar à região.
Lubrinna encarna de forma pitoresca o nebuloso futuro de Itaituba. Encravado no coração da Amazônia, o município é o epicentro de uma avalanche de grandes empreendimentos que ameaçam seriamente uma região de altíssima biodiversidade habitada por diversas comunidades tradicionais e comunidades indígenas munduruku.
Quem toma um barco e navega pelos 850 quilômetros de águas esverdeadas do Tapajós, que rasga de cima a baixo o oeste do Pará, não raro se depara com botos e aves mergulhando, além de uma paisagem verde de tirar o fôlego, protegida por um mosaico composto por reservas florestais e terras indígenas.
Entretanto, um amplo leque de obras – que vão desde hidrelétricas, passando por rodovia, hidrovia, portos fluviais, até projetos de mineração – pode redesenhar em um curto espaço de tempo as feições desse que é, reconhecidamente, um dos mais belos rios da Amazônia.
Sem sombra de dúvida, o projeto com potencial de gerar os impactos sociais e ambientais mais preocupantes é o chamado Complexo Hidrelétrico do Tapajós, um conjunto com potencial para até sete usinas que podem gerar até 14 mil Megawatts (MW) – a mesma capacidade da faraônica usina binacional de Itaipu, erguida durante a ditadura militar na fronteira do Brasil com o Paraguai.
Os estudos de viabilidade conduzidos pela estatal Eletrobras para licenciamento de duas delas – Jatobá e São Luiz do Tapajós – já estão em andamento. Por enquanto, o custo para erguer as duas barragens é estimado em R$ 23 bilhões. E o governo federal não esconde a pressa: já no ano que vem espera licitar pelo menos a construção de São Luiz do Tapajós e prevê que as duas entrarão em operação até 2019.
A energia dessas novas hidrelétricas tem pelo menos um endereço certo: grandes projetos de exploração de minérios no Pará, como ouro e bauxita – a matéria-prima do alumínio. A companhia norteamericana Alcoa, por exemplo, iniciou há apenas três anos a operação da terceira maior jazida de bauxita do mundo no município de Juruti, no extremo oeste do Pará, e já tem planos de construir uma fábrica de beneficiamento – por enquanto, a empresa utiliza energia de origem termelétrica. Já a brasileira Votorantim está levantando uma indústria do mesmo tipo no município de Rondon do Pará. A norueguesa Hydro também tira bauxita no leste do estado.
No caso do ouro, só uma mineradora de médio porte, a canadense Eldorado Gold, tem um projeto concreto de investimento no Tapajós. Mas a própria AngloGold Ashanti, companhia sul-africana considerada uma das maiores empresas de extração de ouro no mundo, também tem requerimentos de pesquisa no oeste do Pará, região hoje tomada pelo garimpo manual – em sua esmagadora maioria, clandestino.
Além de ser considerada a última grande fronteira energética e mineral da Amazônia, a região banhada pelo rio Tapajós tem ainda outro considerável atrativo econômico: é um corredor estratégico para o escoamento da produção de soja colhida no Mato Grosso, o principal produtor de grãos do país. Até 2014, o governo federal pretende gastar R$ 2,85 bilhões para concluir o asfaltamento dos 1.739 quilômetros da BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém – o maior município do oeste do Pará, localizado na foz do Tapajós.
No rastro das hidrelétricas, também está prevista a construção de eclusas que possibilitarão a integração do rio Teles Pires, no Mato Grosso, com o rio Tapajós, no Pará. Além dessa hidrovia, o transporte de commodities por via fluvial também será impulsionado pela instalação de ao menos três portos no município de Itaituba, além da expansão das docas de Santarém. Ambientalistas e ativistas de movimentos sociais preocupam-se com os impactos socioambientais que a explosão do agronegócio pode trazer para o oeste do Pará.
Quando a produção do mítico garimpo de Serra Pelada, localizado no sudeste do Pará, entrou em declínio, no início dos anos 1980, os aventureiros dispostos a encarar a lama e a malária apostaram que o novo eldorado encontrava-se no Tapajós. E eles estavam certos.
Passadas três décadas, calcula-se que hoje existam nada menos que 2 mil pontos de garimpo no entorno do rio. Para chegar até as chamadas “currutelas”, povoados que funcionam como uma espécie de QG para os quase 50 mil homens decididos a desafiar a floresta, só fretando um pequeno avião ou encarando dias no lombo de uma lancha, a partir de Itaituba.
“Cerca de 98% dos garimpos da região são irregulares”, assegura Oldair Lamarque, engenheiro que chefia o escritório do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Itaituba. Não é muito difícil entender por que a esmagadora maioria está na clandestinidade. Para fazer o licenciamento ambiental de uma pequena lavra, do tamanho de até 50 campos de futebol, é preciso viajar até a capital Belém, pagar cerca de R$ 16 mil em taxas e ainda arcar com os custos de transporte dos técnicos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (Sema).
Sem qualquer tipo de fiscalização, os garimpos são um dos principais vetores de degradação ambiental na bacia do Tapajós. E os problemas não se resumem à contaminação da água por conta da utilização de substâncias tóxicas para depurar o ouro, como o mercúrio e – mais recentemente – o cianeto. Novas técnicas têm aumentado a produtividade e potencializado os impactos sobre a floresta. A utilização de retroescavadeiras chamadas de PCs, usadas para revolver o solo à procura do ouro, é uma delas. O serviço que antes demorava quase um mês para ser feito hoje é realizado em apenas dez dias.
Além disso, aumentou significativamente o número de barcaças que garimpam diretamente o leito do rio Tapajós. Nesse caso, servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) entendem que a decisão do governo de reduzir a área de cinco reservas ambientais para a construção das hidrelétricas de Jatobá e São Luiz do Tapajós, em janeiro deste ano, contribuiu para agravar o problema. Sem essa medida, o licenciamento ambiental das usinas não poderia ser feito.
Como parte das áreas foi desprotegida, o número de barcaças no rio cresceu de forma preocupante: pulou de cinco para 35 no trecho de 400 quilômetros entre os municípios de Itaituba e Jacareacanga. “Para desarticular garimpos grandes, como os que existem em Itaituba, é preciso montar praticamente uma operação de guerra”, afirma Nilton Rascon, analista ambiental do ICMBio.
No começo de novembro, fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), escoltados por duas centenas de agentes da Polícia Federal (PF) e da Força Nacional de Segurança Pública transportados até por helicópteros, resolveram fazer uma batida digna de cinema para desarticular um garimpo que funcionava na Terra Indígena Kayabi, já na divisa entre Pará e Mato Grosso e habitada por indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká.
A operação, no entanto, extrapolou o objetivo inicial de desmantelar a extração de ouro, e seu saldo foi desastroso: casas na aldeia arrombadas, embarcações de pesca afundadas a tiro e, o mais grave, um indígena, Adenilson Kirixi, encontrado morto, boiando no rio.
É fato que o garimpo funcionava com consentimento dos indígenas – que alegam ter protocolado informações a respeito da atividade junto à Funai, a fim de formalizar o acordo de parceria que mantinham com os garimpeiros. Numa região completamente negligenciada pelo poder público, os indígenas afirmam que o pedágio pago pelos mineradores era a única fonte de renda de que dispunham para bancar a eletricidade na aldeia e arcar com os custos das crianças que estudam na sede do município de Jacareacanga. Além disso, vendiam parte de sua produção de alimentos aos garimpeiros.
Segundo lideranças ouvidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), desde 2005, os indígenas vêm tentando dialogar com representantes do poder público no sentido de criar projetos de piscicultura, produção de mel e artesanato de forma a reduzir a dependência do garimpo. Mas, por enquanto, nada saiu do papel.
Ainda na avaliação das lideranças ouvidas pelo Cimi, a ação da PF foi calculada para intimidar e fragilizar financeiramente os indígenas, de modo a deixá-los mais “sensíveis” às obras das hidrelétricas na região. Até o presente momento, a PF não se pronunciou sobre o caso, mas abriu um inquérito para investigar o episódio, o qual também é acompanhado pela Funai, o Ibama e a Secretaria-Geral da Presidência da República. O Ministério Público Federal (MPF) também abriu investigação.
Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Funai respondeu por meio de nota que o órgão “tinha conhecimento de que existia atividade ilícita (garimpo) na Terra Indígena Kayabi. No entanto, não conhecia os detalhes de sua operacionalização e dimensão”. A nota acrescenta que “a Funai não tem o poder de autorizar, formalizar acordos ou dar anuência a qualquer atividade ilegal realizada em terra indígena. Além disso, o garimpo em terra indígena depende de regulamentação pelo Congresso Nacional”.
Mineradoras
Se o Tapajós é uma das maiores províncias auríferas do mundo, por que ainda não há mineradoras na região? A resposta se divide, basicamente, em duas explicações. A primeira é geológica. “Aqui não existem depósitos grandes, como ocorre em Goiás ou em Minas Gerais. Os depósitos são pequenos e espalhados. Isso favorece o garimpo manual, e não as grandes mineradoras”, explica Lamarque, do DNPM. A segunda explicação é de ordem estritamente econômica. “A falta de estradas e de fontes de energia inviabiliza grandes projetos de mineração de ouro”, completa.
A construção das hidrelétricas e o asfaltamento da BR 163 já estão despertando a sanha das mineradoras. Por enquanto, o ouro do Tapajós ainda não entrou na mira das companhias consideradas majors – as maiores do mundo. Mas pelo menos cinco empresas identificadas como juniors, como são chamadas as de médio porte, já estão em fase de pesquisa. O mais adiantado deles é o Projeto Tocantinzinho, no município de Itaituba, que já está em fase de licenciamento ambiental e deve entrar em funcionamento até 2016. O empreendimento é de uma subsidiária da Eldorado Gold, do Canadá, que já opera uma mina no Amapá.
E não é apenas o ouro que chama atenção no Tapajós. A gigante Anglo American, uma das dez maiores mineradoras do mundo, com lucro líquido da ordem de US$ 6,17 bilhões em 2011, está levantando o potencial de uma jazida de cobre na Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim – a segunda maior do país, com uma área de 1,3 milhão de hectares, quase dez vezes superior à da cidade de São Paulo. Mas é importante ressalvar que, geologicamente falando, o cobre muitas vezes aparece associado ao ouro. Em outras palavras, a mineradora deve mapear todo o potencial da área.
O perímetro de pesquisa requerida pela companhia inglesa ao DNPM, no segundo semestre de 2011, abrange mais da metade da Flona. Em tese, isso não é ilegal: a legislação ambiental permite a mineração em uma reserva desse tipo – desde que devidamente licenciada e adequada ao plano de manejo.
Porém, sem qualquer tipo de autorização, a Anglo American já vem utilizando máquinas de sondagem na área, desde julho deste ano, pelo menos. A denúncia é feita pelo próprio chefe da Flona do Jamanxim, Haroldo Marques. “Esse pedido para realização de sondagem na área tem que ser formalizado. Eu sou o responsável pelo parecer que autoriza pesquisas e perfurações, mas até agora não chegou nada até mim”, explica o servidor do ICMBio. “Eu vi funcionários em caminhonetes com logotipo da Anglo American, usando uniformes, sem qualquer preocupação em esconder o nome da empresa.”
O chefe da Flona do Jamanxim fica lotado no escritório do ICMBio de Itaituba e precisa de autorização dos superiores de Brasília para ir a campo e fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental. “Eu estava na fiscalização combatendo o desmatamento, pedi a renovação de diárias, mas ela não foi concedida”, explica Marques. “Fui tirado da fiscalização e parei os trabalhos que estava fazendo por lá. Muito esquisito, né?”
Questionada pela Pública, a assessoria de imprensa da Anglo American emitiu nota em que “confirma que empresa requereu áreas junto ao DNPM” e diz que “aguarda a publicação dos respectivos alvarás de pesquisa, para, só então, solicitar a autorização do ICMBio, órgão gestor das Unidades de Conservação no país, e seu respectivo enquadramento no Plano de Manejo [da Flona do Jamanxim]”. A empresa nega, porém, que esteja fazendo trabalhos de sondagem. “A equipe de campo promoveu no período unicamente contatos com superficiários, visando futura celebração de Termos de Acordo, conforme previsto no Código de Mineração”, finaliza a nota.
Os “superficiários” citados na nota da Anglo American são pessoas que reivindicam a propriedade de terras dentro da Flona do Jamanxim. Quando foi criada, em 2006, a unidade de conservação que leva o nome desse afluente do Tapajós já estava ocupada por diversas fazendas. A pecuária, o garimpo e a extração ilegal de madeira fazem dessa a reserva a que mais perdeu mata nativa em todo país, ao longo de 2012.
Curiosamente, a devastação cresce na mesma velocidade que a intenção do governo de reduzir a área da Flona do Jamanxim. Atualmente, um grupo de trabalho do ICMBio de Brasília analisa a possibilidade de extirpar, no mínimo, 200 mil hectares da área atualmente protegida.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que rastreia o desmatamento por satélite, a floresta perdeu, em 2012, 5.069 hectares até outubro. No mesmo período do ano passado, o número era consideravelmente menor: 972 hectares. “A área onde a Anglo American está fazendo as pesquisas é uma das mais preservadas da Flona”, analisa Marques.
Itaguaí Mendes da Silva já não descarta um conflito sangrento na pequena comunidade de Açaizal, localizada a 40 quilômetros do centro de Santarém, o município mais populoso do Tapajós, com 300 mil habitantes. Até dez anos atrás, além de plantar a própria roça e tirar peixe do igarapé que banha o povoado, as 54 famílias – descendentes de indígenas e nordestinos – também arrumavam trabalho como vaqueiros ou capinadores de pasto nas fazendas de gado que circundavam Açaizal.
Porém, desde a chegada dos “gaúchos”, como são apelidados os produtores de grãos que compraram as terras dos criadores de bois a partir de 2001, a relação com os novos vizinhos nunca foi tão tensa. “Nós estamos cercados pela soja”, desespera-se Itaguaí. “A gente não pode nem mais criar galinha. Antes os animais ficavam livres. Agora, não dá para soltar. Se soltar, e eles forem para a área dos gaúchos, morrem.”
Itaguaí também reclama do assoreamento e da contaminação com agrotóxicos dos igarapés onde a comunidade pesca. Por essa razão, os moradores de Açaizal lutam, desde 2004, para que o governo federal reconheça a comunidade como uma terra indígena e retire os sojeiros da área. “Esperamos que em 2013 saia pelo menos uma audiência pública”, afirma.
Os “gaúchos” do oeste paraense não vêm apenas do Rio Grande do Sul. “Muitos são ex-funcionários de grandes fazendas do Mato Grosso, atraídos pelas terras baratas da região”, explica Gílson Rego, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os preços baixos se justificam pela completa ausência de títulos de propriedade regularizados.
“Dez anos atrás, a terra não valia nada aqui. Eram R$ 250 o hectare [equivalente a um campo de futebol, aproximadamente]. Hoje, já está bem mais valorizado, na casa de R$ 5 mil o hectare”, afirma Toni Silver, coordenador da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa). Mesmo assim, o preço é ainda muito baixo quando comparado aos locais onde mais se produzem grãos no país: em Sinop (MT), o mesmo pedaço de terra não é vendido a menos de R$ 21 mil, segundo o Instituto Mato-grossense de Economia Agrícola (Imea).
No oeste paraense, as fazendas de soja cresceram em torno do porto da multinacional Cargill instalado na foz do rio Tapajós, em Santarém, e se concentram na zona rural desse município e na do vizinho Belterra. Como a falta de títulos regularizados inviabiliza a obtenção de crédito em bancos públicos, a trading norteamericana, uma das maiores comerciantes de commodities agrícolas do mundo, é a principal fonte de financiamento dos produtores. “Existem 170 produtores cadastrados na Cargill”, afirma Silver.
Quem chega pela BR 163 a Santarém depara-se ao longo da estrada com alguns silos e armazéns para estocagem não só de soja, mas também de milho e arroz. Porém, a realidade é que as lavouras de grãos ocupam uma área ainda pouco expressiva, que não chega a 60 mil hectares. “Esse é o tamanho de uma única propriedade comum no Mato Grosso”, compara o coordenador da Faepa.
Mais do que uma fronteira para produção, o Tapajós é visto principalmente como um corredor para escoar a produção do Mato Grosso. Além da BR 163, que deve ser completamente asfaltada até 2014, o governo também planeja aproveitar as hidrelétricas para construir eclusas que podem viabilizar uma hidrovia ligando o rio Teles Pires, no Mato Grosso, ao Tapajós.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) até chegou a promover uma licitação para encomendar o projeto técnico da hidrovia. Porém, nenhuma empresa se interessou pelos R$ 14 milhões oferecidos para o trabalho, o que levou o órgão federal a suspender o edital. Mas há quem duvide da obra, pelo menos, para o curto prazo. A desconfiança vem da simples observação da história: as eclusas da hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, ficaram prontas 26 anos após a inauguração da usina.
A ideia da hidrovia é ligar o norte do Mato Grosso ao município de Santarém, onde as embarcações saem do Tapajós, adentram o rio Amazonas e da lá ganham o mundo pelo Atlântico. No porto da Cargill localizado em Santarém, cerca de 95% da carga movimentada vêm do Mato Grosso. Mas, por enquanto, os grãos são primeiro transportados de caminhão até Rondônia e, de lá, seguem em barcaças pelo rio Madeira até o rio Amazonas, que recebe o seu afluente Tapajós em Santarém. No terminal da multinacional norteamericana, são carregados os porões de navios capazes de transportar até 60 mil toneladas de grãos.
O porto fluvial da Cargill foi objeto de intensos questionamentos por parte de ambientalistas e movimentos sociais nos últimos anos. Com o consentimento do governo do Pará, a empresa iniciou a operação do terminal sem a realização prévia do Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) – requisito básico previsto na legislação para licenciar qualquer grande empreendimento. “O porto foi construído em cima de sítios arqueológicos importantes. Além disso, acabou privatizando a praia de Vera Paz, que era muito utilizada pela população de Santarém”, conta Érina Gomes, advogada da ONG Terra de Direitos.
Segundo o diretor de portos da Cargill, Clythio Buggenhout, a empresa construiu o seu terminal depois de vencer em 1999 uma licitação aberta pela Companhia de Docas do Pará (CDP), vinculada à Secretaria de Portos da Presidência da República. De acordo com ele, a área gerida pela CDP já era uma zona portuária consolidada e tinha licença operacional para diversas atividades.
“Foi feita uma consulta à Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Sema-PA) e, como o porto já estava licenciado, ela informou que bastaria fazer um Plano de Controle Ambiental (PCA)”, explica Buggenhout, que, antes de assumir o cargo na Cargill, presidiu a CDP entre 2007 e 2009. De acordo com o executivo, até o começo da década passada, não era comum que se cobrasse a realização de um EIA/Rima para licenciar um terminal portuário. “Hoje a gente entende que todo mundo tem que fazer EIA/Rima para qualquer terminal. Mas, na época, era atípico.” Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Cargill respondeu a questionamentos da Pública. Clique aqui para ler a íntegra das respostas.
As justificativas da Cargill não convenceram o MPF, que se baseou sobretudo na Resolução 237, de 1997, publicada dois anos antes da licitação vencida pela Cargill, para cobrar a realização do EIA/Rima. Depois de um longo questionamento judicial promovido pelo MPF, que até obteve liminares para paralisar temporariamente as atividades do porto, a Cargill foi obrigada a fazer o estudo.
A primeira versão foi concluída em 2008 – cinco anos após a inauguração do terminal fluvial. Porém, a Sema-PA exigiu que o trabalho fosse refeito e que se ampliasse a área de influência do empreendimento, para que fossem analisados os impactos socioambientais trazidos pela inevitável expansão do cultivo da soja no oeste paraense, impulsionada pelo porto. A segunda versão do EIA/Rima ficou pronta em 2010.
Porém, o imbróglio está longe de chegar ao fim: a CPEA (Consultoria, Planejamento e Estudos Ambientais), empresa contratada pela Cargill para fazer o estudo de impacto ambiental, é acusada de fraude pelo MPE-PA. Na ação movida pelo órgão estadual, a CPEA é acusada de ter inserido “informações parcialmente incongruentes, as quais apontam desconformidades entre os textos utilizados como pilares para a construção dos argumentos favoráveis ao Licenciamento Ambiental da empresa Cargill S.A. e os resultados dos próprios autores quanto às suas conclusões”.
Dentre os dados supostamente distorcidos pela CPEA, por exemplo, encontram-se estatísticas sobre o desmatamento na zona rural de Santarém, que teriam sido adulteradas de forma a não serem diretamente correlacionadas à instalação do porto da Cargill. Entidades que trabalham em parceria com movimentos sociais e populações tradicionais também acusam o EIA/Rima de não levar em consideração os problemas sofridos por algumas comunidades do Planalto Santareno descendentes de indígenas e de quilombolas, impactadas diretamente pelo plantio e pelo transporte da soja, como se verifica no povoado de Açaizal.
O representante da Cargill nega que a empresa esteja fomentando a violação de direitos de comunidades tradicionais. “A Funai nunca nos oficiou, dizendo que estamos comprando indevidamente de alguma fazenda em área indígena”, argumenta Buggenhout. Ele também afirma que, para a empresa, a produção de soja no oeste do Pará, “comercialmente, é irrisória”. “Se toda a região de Santarém for plantada com soja, e não é isso que a gente quer, ainda assim não seria significativo no movimento do terminal, que já se movimenta – 95% – com carga vinda do Mato Grosso.”
Em entrevista concedida à Pública por e-mail, o diretor-presidente da CPEA, Sérgio Luis Pompeia, refuta as acusações do MPE-PA e afirma que “não houve qualquer dado distorcido sobre o desmatamento nas áreas de influência do empreendimento”. Além disso, diz ele, “as áreas indígenas e de quilombolas existentes na área de influência indireta do empreendimento foram todas relacionadas e analisadas dentro do diagnóstico do EIA/Rima”. Pompeia argumenta ainda que a ação movida pelo MPE-PA “decorreu de um equívoco na análise do EIA realizada por seus assistentes técnicos”. O processo judicial ainda está longe de ter um desfecho: a primeira audiência está marcada para agosto de 2013.
Apesar das desconfianças em relação ao EIA/Rima, o fato é que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará concedeu, em agosto deste ano, a licença operacional para funcionamento do terminal e, de quebra, também aprovou a licença de instalação para que a infraestrutura do porto seja expandida. “Muitas empresas do agronegócio estavam esperando resolver esse caso da Cargill. Já temos notícias de que outras querem construir portos no Tapajós”, explica Érina.
A menina dos olhos das grandes empresas do agronegócio – e também do setor de transporte de cargas – é o distrito de Miritituba, localizado na margem direita do rio Tapajós, no município de Itaituba. Trata-se de um ponto logístico estratégico não só pela via fluvial, mas também pelo modal rodoviário. É precisamente do lado direito do rio, na altura de Miritituba, que se encontram tanto a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém, como as vias de acesso à rodovia Transamazônica, que rasga a Amazônia de leste a oeste.
Em Miritituba, barcaças de pequeno porte serão carregadas sobretudo com grãos e vão seguir viagem pelo Tapajós e pelo rio Amazonas até outros portos fluviais de maior envergadura, como os dos municípios de Santarém, Barcarena (próximo à capital paraense) e Santana, no entorno de Macapá (AP). “Mas não são apenas grãos que vão ser escoados. Produtos da Zona Franca de Manaus (AM) também devem chegar à região Centro-Oeste a partir de Miritituba”, analisa Buggenhout.
Além da própria Cargill, pelo menos três grandes empresas já compraram terrenos em Miritituba, nos últimos dois anos, para a construção de novos terminais. Uma delas é a também norte-americana Bunge, que figura entre as quatro maiores empresas mundiais do agronegócio e que já está com o processo de licenciamento ambiental do porto em fase avançada. As outras duas são a Hidrovias do Brasil (HB), pertencente ao fundo de investimento P2 Brasil, e a Cianport – empresa ligada a grandes produtores de grãos do Mato Grosso interessados em fazer a logística da sua produção por conta própria. Mas há quem diga que o número de novos portos possa ser até duas vezes maior.
Exageros e especulações à parte, não há como negar que o Tapajós é a bola da vez na expansão da fronteira amazônica – processo que, historicamente, deixou feridas não cicatrizadas devido à lógica predatória com que se instalou em outras partes da floresta. Resta torcer para que a história não se repita no oeste do Pará. Mas, pelo andar da carruagem, a torcida terá de ser grande. Muito grande.
Fonte: A Publica, 11/12/12