Justificando, 11/08/2017
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Até hoje sou capaz de me surpreender com a luz elétrica. Como pode? A gente aperta o interruptor aqui e, não sei como, o ambiente fica iluminado. Faço isso cotidianamente, mas sem compreender. Ao menos pra mim, é complexo. Estaria eu, então, melhor se passasse a usar velas em casa?
A seguir a lógica da defesa que vem sendo feita do Distritão, sim. A “simplicidade” desse sistema – assim traduzida na maior facilidade de que o eleitor entenda quem ganhou a eleição para o parlamento – vem sendo vendida, e comprada, como virtude insuperável. O deputado Efraim Filho (PB), deixou explícita essa posição: “Os eleitores não são técnicos, nem teóricos, nem cientistas políticos, o que os eleitores entendem é: quem recebeu mais votos será o meu representante”.
A fala do líder do DEM sobre um dos pontos mais drásticos da PEC 77/03, em votação na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, confunde simplicidade com simploriedade. Uma opção só pode ser chamada de simples se ela é, antes, adequada ao que se propõe fazer e, então, comparada a outras, se destaca por fazer isso de modo menos complicado. Mas é apenas simplório optar por algo que é fácil de entender sem antes verificar a adequação da opção.
Feita essa distinção, podemos refutar a afirmação do deputado e dizer que o Distritão não é simples, é simplório: a fórmula “quem tem mais votos ganha” não é difícil de ser explicada, é verdade; mas isso está longe de ser adequado à eleição para a Câmara dos Deputados e parlamentos estaduais e municipais.
Para entender o porquê, precisamos, primeiro, saber o que vem sendo designado por “Distritão”. Por essa proposta, na eleição das Câmaras e Assembleias, seria preservada a magnitude do distrito como equivalente à circunscrição da eleição, mas o resultado da eleição passa a ser definido exclusivamente pela regra majoritária.
Hoje, temos a equivalência do distrito à circunscrição (exemplo: os mesmos candidatos a vereadores podem ser votados em toda a região geográfica do município, inexistindo divisão em distritos de magnitude menor), mas o resultado é definido por regras de distribuição proporcional das cadeiras, que prestigiam a representação partidária em lugar da nominal (um candidato pode ser mais votado que outro e não se eleger, se o partido daquele mão tiver globalmente um bom desempenho). Com o Distritão, os mais votados nominalmente em toda a circunscrição se elegeriam.
Muita gente é simpática ao sistema majoritário para todos os cargos porque se convenceu de que há uma “injustiça” na distribuição proporcional de cadeiras. Parece que é “antinatural” não permitir que as pessoas mais votadas se elejam.
Ocorre que um sistema eleitoral é um conjunto de regras sobre como aproveitar votos. Não nos enganemos: não há um jeito “natural” de fazer isso. Há aquele a que estamos mais habituados: o sistema majoritário. Na escolinha, aprendemos que podíamos coletivamente tomar decisões por maioria, levantando a mão pra indicar nossa preferência entre as opções indicadas pela professora. Mas, à medida que crescemos e temos que tomar decisões coletivas mais complexas que a cor do papel crepom que enfeitará a sala na festa junina, podemos também perceber que o sistema majoritário não dá conta de tudo.
Ele pode levar a decisões injustas, especialmente nos casos em que apenas uma parte do grupo, por ser minoritária, for sempre incapaz de influir na decisão. Um pouco de atenção nos faz enxergar que é como se aquela pequena parte do grupo sequer exista; na verdade, é como se sequer possa ser considerada parte do grupo. Por isso, à medida que amadurecemos, podemos pensar em soluções mais justas para os processos decisórios. Como, por exemplo, estabelecer que o pequeno grupo, a cada tantas aulas de educação física, decida o esporte que irá ser praticado por todos. Assim, vamos compreendendo que questões mais complexas tenderão a demandar regras também mais complexas para que se alcance uma solução adequada.
Se chegamos a essa percepção, podemos continuar a crítica ao Distritão resgatando a peculiaridade do Senado frente aos demais órgãos legislativos, para saber com que tipo de questão nos confrontamos ao buscar definir quais grupos devem ser levados em consideração na escolha de representantes eleitos.
O Senado não reúne, propriamente, representantes do povo, mas dos estados da Federação. É (ou deveria ser) uma Casa voltada ao equilíbrio do pacto federativo. Por isso, todos os entes possuem representação idêntica (3 membros) independentemente da população de seu território. O senador “fala” pelo estado, pelo ente federado, perante os demais. Daí se justificar que a abstração da “voz do ente federado” seja concretizada em pessoas da preferência da maior parte dos eleitores.
Os demais órgãos legislativos são essencialmente diferentes. Eles reúnem representantes do “povo”. Por isso, o número de cadeiras varia conforme a população. Varia, note-se, proporcionalmente: municípios e estados mais populosos têm mais vereadores e deputados estaduais e federais. Daí que o problema “como compor os quadros das Câmaras e Assembleias” só possa ser adequadamente respondido através da diretriz da proporcionalidade. É um problema visivelmente mais complexo que o de definir a “voz do ente federado”.
E essa complexidade somente tende a aumentar. Afinal, a densificação do discurso democrático em uma sociedade plural reivindica que a proporcionalidade não considere apenas um total populacional. É preciso buscar critérios que assegurem a representatividade de minorias políticas (e também de gênero, étnicas, capacitárias e quantas mais existirem). Enfim, é um problemaço.
Os defensores do Distritão querem dizer que esse problemaço pode ser resolvido na base de “o mais votado leva”. Em lugar de termos regras que busquem distribuir as cadeiras disponíveis proporcionalmente aos votos recebidos, somente seriam aproveitados os votos dos candidatos nominalmente mais votados.
Ora, essa é a lógica da eleição para o Senado, que é similar à da eleição para Presidente, Governador e Prefeito. Todos os eleitores do estado votam pra eleger um nome pra cada cargo. O partido pode lançar candidatos equivalentes a 100% dos cargos em disputa (no caso do Senado, alterna-se a renovação de 1 ou 2 cadeiras a cada eleição). Ganha o mais votado.
Então, quer visualizar como seria o Distritão? Dê uma olhada na eleição do Senado. A disputa é bem menor e bem mais previsível. Porque todo político sabe que ali só briga cachorro grande: figuras políticas tradicionais, respaldadas por grandes partidos e, principalmente, com financiamento assegurado. De exceção, apenas pessoas de uma liderança carismática avassaladora, que conseguem fazer frente ao tradicionalismo.
Imaginemos essa lógica aplicada aos demais órgãos legislativos. De pronto, a proporcionalidade, razão de ser do número de cadeiras maior e variável, deixa de existir. As elites políticas que não chegam a ter a cancha necessária para disputar o Senado ganham um presentão: inúmeras cadeiras que poderão ocupar bastando aniquilar concorrentes menores. E, por menores, quero dizer menos conhecidos do eleitorado em geral (ainda que muito conhecidos localmente) e com menos recursos financeiros que deem fôlego para fazer uma campanha de deputado federal que acompanhe a magnitude do distrito – o candidato a deputado federal, por exemplo, teria que se fazer competitivo em todo o estado, não bastando mais o apoio na sua microrregião.
Isso dificulta tremendamente o surgimento de novas lideranças políticas, ao tempo que favorece celebridades com bala na agulha.
Mas mesmo estas são pontuais. A vantagem grande continua com os políticos tradicionais, porque são mais conhecidos e têm poder dentro dos partidos pra impor suas candidaturas e, sobretudo, para direcionar recursos para si próprios.
Há razão em dizer que o eleitor em geral não é um eleitoralista ou um cientista político. Mas é falacioso dizer que isso legitima adotar o Distritão. E é perverso que nossos deputados atuais, por receio de não se reelegerem em 2018, façam uso estratégico da ignorância dos “leigos” para tentar salvar as próprias peles. Melhor serviço fariam buscando esclarecer aqueles que os elegeram sobre como funciona o sistema proporcional e porque é importante para uma democracia assegurar pluralidade e vias de renovação de seus quadros políticos.
O mais dramático é que o Distritão segue sendo discutido a portas fechadas, alinhavado com um modelo de financiamento público que assegure aos pretendentes à reeleição a verba necessária a se perpetuarem no parlamento. Na Comissão Especial, já ocorreu a aprovação do modelo, em 09 de agosto, por 17 a 15 votos, com 2 abstenções. Seguirá o projeto para o plenário. Sem holofote, pois se o objetivo é manter obscuros os reais impactos do Distritão, não se deseja mais que uma tímida vela para iluminar o ambiente.
Roberta Maia Gresta é Doutoranda em Direito Político (UFMG), professora, assessora (TRE-MG) e membro-fundadora da ABRADEP.