DCM, 02/06/2017
Erika Santos, que denunciou a caixinha no Porto de Santos em 2000 (reprodução do Instagram)
Um mistério ronda a vida da hoje psicóloga Erika Santos. Ela, em 2000, denunciou a caixinha existente na administração do porto de Santos que, segundo disse em juízo, abastecia o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer.
Foi quando brigou com seu ex-companheiro, Marcelo de Azeredo, apadrinhado de Temer que presidiu a Companhia de Docas do Estado de São Paulo – CODESP e, como tal, também beneficiário das propinas.
Para provar o que dizia, juntou documentos na Ação de Reconhecimento e Dissolução Estável, Cumulada com Partilha e Pedido de Alimentos ajuizada na 3ª Vara de Família, Órfãos e Sucessão, de São Paulo. Eles, segundo disse, foram retirados do computador do ex-companheiro.
Por essa contabilidade, Temer, só naquele período, teria embolsado da caixinha das empresas que operavam no porto R$ 2.726.750,00.
Como já mostramos aqui em outras reportagens, Temer jamais foi investigado por isso. Contou com a benevolência de dois procuradores-gerais da República: Geraldo Brindeiro (em 2001) e Roberto Gurgel (em 2011).
Mas, na última reportagem desta série sobre a influência de Temer no porto de Santos, mostramos que a Receita Federal confirmou as denúncias. Uma investigação fiscal provou aumento patrimonial a descoberto (sem origem declarada) de Marcelo e sua irmã, Carla.
O que aconteceria se Michel Temer também fosse investigado?
Em 2007, ele não quis esclarecer à Polícia Federal, quando convidado, sobre sua relação com Marcelo de Azeredo e as acusações feitas por Erika. Em 2001, da tribuna da Câmara, negou ter recebido propinas e falou que a então estudante de psicologia negara tudo o que estava escrito na ação, da qual ela desistiu. Surge daí o mistério.
Erika, através de um novo advogado, José Manuel Paredes, desistiu da ação. Ninguém sabe ao certo, nem mesmo Paredes, os motivos que a levaram a tal gesto. Acredita-se que, após ameaçar cobrar judicialmente uma partilha de bens e uma pensão mensal do ex-companheiro, tenha conseguido um bom acordo, financeiramente falando.
Não é impossível supor que, diante das denúncias que tiveram repercussão imediata com uma reportagem da revista Veja, o próprio deputado Temer tenha pressionado seu afilhado político para resolver a questão longe do tribunal e da opinião pública.
Erika, como expôs na ação, queria manter o status quo adquirido na convivência à qual dedicou cerca de três anos de sua vida. Aparentemente conseguiu, mas alguns dados levantados recentemente mostram que não deve ter sido tão fácil assim.
Desde então ela desapareceu do mapa. Nunca mais falou a respeito e ainda hoje não comenta o assunto, como deixou claro no dia 19 de julho quando procurada, por telefone, por nós. Foi gentil e educada, na única ligação das muitas que lhe fizemos, mas não aceitou falar:
“Eu não falo nem por telefone, nem pessoalmente sobre isso, tá? Esse assunto para mim já não converso mais a respeito. Tudo o que foi feito está registrado, então você pesquisa, por favor, tá? Agradeço seu contato, mas eu não posso falar agora”.
Ao pesquisar, descobre-se que, ao conhecer Marcelo, em 1997, em Brasília, com 20 anos (nasceu em abril de 1977), ela provavelmente morava em Sobradinho, cidade satélite da capital, onde ainda hoje reside sua mãe, com 67 anos. Na época, ela se preparava para o vestibular de psicologia. A partir do encontro, viveu uma espécie de “conto de fada”.
“Como sói acontecer em filmes e livros, apaixonaram-se à primeira vista”, relataram os advogados Martinico Izidoro Livovschi e seu filho Sérgio, na inicial da ação na Vara de Família, que antes de ser ajuizada foi lida, remendada e aprovada pela própria autora.
Esse detalhe – de que ela leu o documento antes de ele ser protocolado —, desmente-a quando, segundo Temer, a ação apresentava os documentos da CODESP por iniciativa de seus advogados sem o seu consentimento.
A peça judicial dá um breve relato do “conto de fadas”. Ainda em 97, segundo o documento, “foram passar uma verdadeira ‘lua de mel’ em Nova Iorque, passando por Boston”. O vestibular acabou sendo feito em São Paulo para atender o desejo dele: “um verdadeiro pedido de casamento informal”. Foi nas Faculdades Metropolitanas Unidas, FMU, que ela cursou psicologia. Estava no terceiro ano em 2000.
Além da mesada de R$ 5 mil para os gastos, possuía um cartão de crédito dependente do companheiro. Juntos conheceram a Itália (Roma, Florença e Veneza), com direito a caríssimos presentes das grifes Louis Vuitton e Chanel e jantares nos mais sofisticados restaurantes. Estiveram nos Estados Unidos (Miami e Nova York), México (Cancún), França (Paris) e nas Ilhas Gregas. O Dia dos Namorados em 2000 foi em Buenos Aires.
O sonho, porém, ruiu quando o exagero na bebida levou Marcelo a agredi-la com violência. Não houve registro na polícia. Mas o pedido judicial narra três agressões, embora ela diga que tenham sido mais.
A última foi em julho de 2000, quando decidiu sair da casa, sem mesada, nem cartão de crédito. Os pertences que ficaram só lhe foram devolvidos depois, quando retirados do apartamento por um amigo em comum, aos poucos, em sacos de lixo.
Acostumada a esse luxo e conhecedora do esquema de propina que proporcionava os ganhos dissimulados do companheiro, na Vara de Família ela cobrava uma mesada de R$ 10 mil e a partilha de alguns dos bens. Eram imóveis e carros de luxos adquiridos enquanto os dois estavam juntos.
Como alertou, alguns deles foram colocados em nome de parentes de Marcelo. Esse é mais um detalhe da denuncia que a Receita Federal constatou, pelo menos com relação a uma Mercedes Benz e um Porsche.
Dezesseis anos depois, Erika é “psicóloga por formação, com especialização em Tendências e Comportamento de Consumo”, como descreve seu blog. Desde maio de 2007, possui a uma agência.
Para chegar aonde chegou, ela teve que correr atrás. Apesar do acordo financeiro que se suspeita ter sido negociado em 2000 com o ex-marido/agressor, em dezembro de 2002 ela passou a trabalhar como vendedora de loja.
Daí surge o mistério do por que da necessidade de trabalho se ela tinha fechado um acordo com o ex-marido. Teoricamente, significa necessidade de sobrevivência.
Em dezembro de 2002, trabalhou na T.F. Indústria e Comércio de Modas Ltda., uma cadeia com 120 lojas, segundo descreveu um dos seus proprietários, Tufi Duek. Ele não guarda a menor ideia de quem seja Erika, que deixou a empresa nove meses depois.
O mesmo já não ocorre com Neusa Maria Sabino, a “Nega”, ex-proprietária da Nere Modas Ltda., onde Erika ficou apenas seis meses, entre setembro de 2003 e março de 2004. Com alguma dificuldade, lembrou-se da ex- funcionária. “Ela trabalhou na minha loja no shopping Iguatemi. Encontrei com ela há uns três meses e ouvi: ‘Nega, tudo bem? Você não lembra de mim? Trabalhei na sua loja do Iguatemi’, relembra Neusa.
Logo em seguida, no mesmo Iguatemi, ela trabalhou na Tríduo Modas Feminina Ltda., onde ficou de maio de 2004 a junho de 2005 e se destacou como a melhor da loja. É o que recorda a sua ex-proprietária Marly Ribeiro de Carvalho: “Era uma super vendedora. Nunca mais tive contato. Mas era uma super profissional. Não lembro se ela estudava, mas sei que era a melhor vendedora. Foi rápido, infelizmente. Para nós foi uma perda, ela era a melhor”.
Em nenhum desses empregos, comentou qualquer coisa sobre seu antigo relacionamento ou mesmo sobre as denúncias que fez contra o então deputado federal Temer. Também é mistério se Erika foi ouvida em alguma investigação policial sobre as denúncias que fez.
Graças à Procuradoria Geral da República, como dito acima, Temer não poderia mais ser investigado. Mas, quando o Supremo decidiu isso, devolveu o inquérito policial para São Paulo, pois deveria prosseguir com relação a Marcelo de Azeredo e outros diretores da Companhia Docas do Estado de São Paulo.
Possivelmente, se a investigação prosseguisse poderiam surgir os “indícios” que tanto Brindeiro como Gusmão alegaram inexistir para propor o arquivamento da investigação contra o deputado.
A investigação não voltou mais para Santos, onde foi presidida pelo delegado Cássio Nogueira. Foi ele quem convidou Temer a prestar esclarecimentos e não obteve resposta. Diante disso, propôs o pedido de autorização ao Supremo para ampliar a investigação.
Quando retornou de Brasília, o caso não voltou mais para a Justiça Federal em Santos. Aportou na 2ª Vara Federal Criminal da capital, tombado com o n° 0002518-52.2006.403.6104. Em 19 de janeiro último, ele foi remetido à Procuradoria da República da capital, mas há três semanas nossas buscas por ele foram infrutíferas. A Polícia Federal diz que não está com ela e na Procuradoria ainda não o encontraram.
Na verdade, não se sabe bem porque esse inquérito ainda está em andamento. Afinal, foi aberto para investigar corrupção, fraude em licitações e lavagem de dinheiro, supostamente ocorridos na gestão de Marcelo de Azeredo (entre junho de 1995 e maio de 1998).
Portanto, são crimes com cerca de 20 anos que podem muito bem estar prescritos. A impunidade tende a prevalecer não apenas no caso de Temer, se o seu envolvimento fosse provado, mas também dos demais envolvidos. Tudo por conta da lerdeza da Polícia Federal, da Procuradoria da República e do Judiciário. O que só ocorre – ou deixa de ocorrer – quando há outros interesses em jogo.